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Foragido desde 2017, acusado de ordenar chacina em MT seguiu vendendo gado

Lalo de Almeida/Folhapress
Imagem: Lalo de Almeida/Folhapress

Por André Campos*

e Dom Phillips, do The Guardian

03/03/2020 04h02

Apontado pelo MP-MT (Ministério Público do Mato Grosso) como o mandante de uma chacina que em abril de 2017 deixou nove mortos em Colniza (MT), município inserido na Amazônia, Valdelir João de Souza está foragido da Justiça há mais de dois anos, mas continuou criando gado em área ocupada ilegalmente em um assentamento da reforma agrária em Rondônia.

Ao longo de 2018, Souza vendeu rebanhos a pecuaristas da mesma região que, por sua vez, forneceram animais a dois dos maiores frigoríficos brasileiros: a JBS e a Marfrig, segundo documentos sanitários obtidos pela Repórter Brasil.

A legislação não proíbe que frigoríficos comprem gado de fazendas e fazendeiros envolvidos em crimes comuns ou em problemas fundiários — há apenas a proibição da aquisição de animais criados em áreas embargadas por desmatamento ilegal.

O processo está tramitando no Tribunal de Justiça de MT pela chacina ter acontecido em Colniza, a cerca de 300 km da divisa com Rondônia. Os pecuaristas, no entanto, têm fazendas no estado vizinho, na região de Machadinho D'Oeste (RO), perto da fronteira.

Em 9 de maio de 2018, quando já estava foragido, a fazenda Três Lagoas, de propriedade de Souza, repassou ao sítio Erança de Meu Pai (sic), de Maurício Narde, 143 animais fêmeas. Onze minutos depois, o sítio de Narde transferiu 143 animais, com as mesmas características de sexo e idade, para abate no frigorífico da JBS.

Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, parceiro nesta reportagem, Maurício Narde confirmou a transação comercial, mas não explicou porque vendeu à JBS esses 143 animais poucos minutos depois de tê-los comprado de Valdelir Souza.

"A gente compra e vende. É só para girar mesmo", afirmou, antes de decidir não responder mais aos questionamentos da reportagem ao telefone.

Além de comprador de gado, Narde já foi funcionário de uma das serrarias de Souza, a Madeireira Cedroarana — que entre 2007 e 2017 foi multada em R$ 902 mil pelo Ibama por crimes ambientais.

Poucos meses depois, em 25 de junho de 2018, Souza também negociou 153 bovinos com a fazenda Morro Alto, de José Carlos de Albuquerque, que naquele ano constava na lista de fornecedores da JBS e que abasteceu uma unidade de abate da Marfrig em Rondônia.

À Repórter Brasil, José Carlos de Albuquerque afirmou que o rebanho de Souza estava devidamente habilitado para venda, com documentação sanitária em dia, e que cabe aos órgãos de controle atestar a legalidade de bois e vacas disponíveis para negociações no mercado.

Gado em pastagem próximo à Floresta Amazônica em Novo Progresso, no Pará - picture-alliance/dpa/AP/L. Correa - picture-alliance/dpa/AP/L. Correa
Gado em pastagem próximo à Floresta Amazônica em Novo Progresso, no Pará
Imagem: picture-alliance/dpa/AP/L. Correa

"É como comprar uma camiseta em uma loja de um shopping. Não posso levantar suspeição de que a loja não esteja com seu alvará de funcionamento em dia, ou taxas de bombeiros etc.", diz o pecuarista. "Acredito nos órgãos de controle, de que aquela atividade ali estabelecida está sendo fiscalizada para tal."

Apesar de registros sanitários apontarem a entrada de gado fornecido por Souza na Fazenda Morro Alto, Albuquerque afirma que a compra dos animais não foi consolidada por divergências comerciais. Os animais, segundo ele, foram "estornados" para o fornecedor. A reportagem pediu a ele o envio de documentos que comprovem o cancelamento do negócio, porém Albuquerque não respondeu.

A Repórter Brasil e o Guardian também tentaram ouvir Valdelir João de Souza, mas não houve retorno às tentativas de contato com o pecuarista, feitas por meio de seu escritório de advocacia.

"Lavagem de gado"

Especialistas ouvidos pela Repórter Brasil afirmam haver indícios de que Souza fez uso de uma prática recorrente entre fazendas com problemas ambientais, conhecida como "lavagem de gado", para conseguir vender animais à JBS.

A prática consiste em transferir o gado de uma fazenda com desmatamento ilegal para uma propriedade "ficha limpa" com o objetivo de encobrir a origem dos animais para os compradores.

A "lavagem de gado" tem como objetivo driblar o compromisso de "desmatamento zero" na Amazônia, assumido pelos maiores frigoríficos brasileiros, e o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) da Carne, um pacto firmado em 2009 pelas produtoras brasileiras de carne para monitorarem seus fornecedores e suspenderem a compra de fazendas com problemas socioambientais, entre eles desmatamento ilegal ou trabalho escravo.

Imagens de satélite mostram que grande parte de fazenda Três Lagoas, do pecuarista foragido, foi desmatada em 2015. Souza não poderia, portanto, fornecer diretamente à JBS.

"Não faz nenhum sentido um animal ficar 11 minutos em uma fazenda para depois ir para o frigorífico. Essa história tem todos os componentes de um processo de triangulação para lavagem de gado", analisa Mauro Armelin, diretor da Amigos da Terra, organização que estuda a cadeia produtiva da pecuária desde 2009, após analisar os documentos enviados pela Repórter Brasil. "Tudo indica que os animais foram enviados diretamente ao frigorífico sem passar por uma segunda propriedade", completa.

O procurador Daniel Azeredo, um dos principais responsáveis pela assinatura do TAC da Carne, afirma que o acordo também proíbe a compra de gado de pessoas condenadas por assassinatos que estejam relacionados a conflitos por terra.

Placa indica caminho até Colniza, no Mato Grosso, onde houve chacina de nove trabalhadores rurais em abril - Ahmad Jarrah/Repórter Brasil - Ahmad Jarrah/Repórter Brasil
Placa indica caminho até Colniza (MT) onde uma chacina matou nove pessoas em abril de 2017
Imagem: Ahmad Jarrah/Repórter Brasil

Fazenda em assentamento

Além dos problemas com o fornecimento de gado, a fazenda de Souza é irregular por estar localizada dentro do Projeto de Assentamento Lajes, em Machadinho D'Oeste (RO) — município vizinho a Colniza — apesar de ele não constar na lista oficial de beneficiados pela reforma agrária.

Ele declarou no Cadastro Ambiental Rural (CAR), em 2018, ser o proprietário de duas áreas dentro do assentamento, totalizando 1.052 hectares — tamanho superior ao permitido pela legislação, quando dentro de um assentamento.

O Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) informou que os lotes citados pela reportagem estão em nome de outros beneficiários, não no nome do pecuarista foragido.

Informado sobre as irregularidades relativas à fazenda de Souza dentro do assentamento da reforma agrária, o Incra informou que, diante da denúncia feita pela reportagem, irá realizar uma vistoria na fazenda.

Já no envolvimento com a chacina, Souza foi denunciado pelo MP-MT por homicídio triplamente qualificado. De acordo com o inquérito, ele contratou, há cerca de três anos, um grupo conhecido como "encapuzados" para matar os trabalhadores. Um mês após o crime, ele teve sua prisão preventiva decretada pela Justiça, mas nunca se entregou e continua com paradeiro incerto. O caso ainda não foi julgado.

As mortes em Colniza, segundo investigação policial, estavam relacionadas a disputas por terras e à extração ilegal de madeira — Souza, além de criar gado, também foi proprietário de serralherias na região.

Arquivo: Polícia investiga mortes em assentamento no Mato Grosso

Band Notí­cias

"Souza não está entre os fornecedores', diz JBS

Procurada pela Repórter Brasil, a JBS classificou como "irresponsável" qualquer tentativa de vinculação do nome da companhia a Valdelir João de Souza. A empresa afirma que ele nunca figurou em sua lista de fornecedores. Além disso, diz não "adquirir animais de fazendas envolvidas com desmatamento de florestas nativas, invasão de terras indígenas ou áreas de conservação ambiental, violência rural, conflitos agrários e que utilizam trabalho forçado ou infantil".

Já a Marfrig informou que desde 2012 solicita a seus fornecedores diretos informações voluntárias sobre os pecuaristas e as fazendas dos quais eles possam ter adquirido animais. Em outubro, a empresa firmou parceria com a ONG ambiental WWF para aprimorar o uso dessas informações na verificação de problemas em fornecedores indiretos. Leia aqui íntegra da nota.

Outra linha de trabalho da Marfrig é cruzar as informações comunicadas pelos fornecedores com mapas de áreas mais expostas ao risco de desmatamento, visando reduzir riscos. Segundo a empresa, mais da metade (53%) dos animais que ela abate no bioma amazônico são de fazendas de ciclo incompleto — ou seja, que adquirem animais de outras áreas durante a produção.

*colaborou Ana Magalhães