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Mulheres da Força Aérea dos EUA dizem que assédio sexual ainda é prática desenfreada entre as tropas

Jennifer Smith, sargento técnica da Força Aérea dos Estados Unidos, denuncia que, durante seus 17 anos de carreira como militar, foi assediada em várias ocasiões e sofreu repetidos ataques de natureza sexual - Rich Addicks/The New York Times
Jennifer Smith, sargento técnica da Força Aérea dos Estados Unidos, denuncia que, durante seus 17 anos de carreira como militar, foi assediada em várias ocasiões e sofreu repetidos ataques de natureza sexual Imagem: Rich Addicks/The New York Times

James Risen

De Washington (EUA)

14/11/2012 05h40

Jennifer Smith, sargento técnica da Força Aérea dos Estados Unidos, entrou no escritório de um oficial sênior da Base Aérea de Kunsan, na Coréia do Sul, carregando uma pilha de papéis. Segundo ela, em vez de assinar os documentos, o oficial insistiu para que ela se sentasse. “Ele me disse: ‘é tarde de sexta-feira. Por que você não tira sua blusa e fica mais confortável?’”, relembra Jennifer.

Na Alemanha, um sargento que se ofereceu para levá-la para casa tentou abusar sexualmente dela, disse Jennifer. Ele só foi dissuadido quando colegas intervieram. Na Base Shaw da Força Aérea dos EUA, localizada na Carolina do Sul, onde, depois de vários incidentes, Jennifer se queixou sobre materiais pornográficos e outros conteúdos explícitos encontrados nos computadores de sua unidade, um supervisor a alertou e disse que ela deveria se manter calada.

Segundo Jennifer, durante seus 17 anos de carreira como soldada* desempenhando tarefas administrativas em esquadrões de caças da Força Aérea, ela foi assediada em várias ocasiões e sofreu repetidos ataques de natureza sexual. Ela disse que decidiu falar agora, depois de se manter em silêncio durante vários anos, porque altos oficiais estavam envolvidos ou pareciam tolerar comportamentos inadequados por parte dos pilotos de caça, um dos grupos de elite das forças armadas norte-americanas.

“Eu aprendi rapidamente que as soldadas que se dão bem são aquelas que mantêm a boca fechada”, disse Jennifer, que apresentou uma queixa formal no mês passado, alegando que a Força Aérea fez vista grossa a ocorrências generalizadas de assédio sexual e ataques contra mulheres. “Abrir a boca é o caminho mais rápido para acabar com a carreira de uma mulher nas forças armadas”.

A Força Aérea não quis comentar as alegações de Jennifer, citando leis relacionadas à privacidade, mas disse que atua para combater ocorrências de má conduta. “Temos como meta zerar as agressões sexuais na Força Aérea dos Estados Unidos”, disse em declaração por escrito o general Mark A. Welsh III, chefe do estado maior da Força Aérea norte-americana. “Se você é um comandante ou um supervisor e você não está direta e agressivamente envolvido em falar sobre este assunto com sua unidade, então você não faz parte da solução, você faz parte do problema”.

Confrontado com ações judiciais e com as crescentes evidências de abuso sexual generalizado no serviço militar norte-americano, o secretário de Defesa dos EUA, Leon E. Panetta, reconheceu este ano que o número de agressões sexuais nas forças armadas é provavelmente muito maior do que as estatísticas oficiais mostram, uma vez que vários episódios são acobertados. Mais de 3.000 casos de agressão sexual foram relatados em 2011 em todas as forças militares dos EUA, mas Panetta disse que os números reais podem chegar a 19 mil.

O Departamento de Defesa dos EUA descobriu que aproximadamente uma em cada três mulheres do serviço militar foi atacada sexualmente, em comparação a uma em cada seis mulheres civis. Cerca de 20% das veteranas do sexo feminino que serviram no Iraque e no Afeganistão sofreram alguma forma de agressão sexual ou trauma relacionado a esse tipo de ataque, de acordo com o Departamento de Veteranos. “Apesar da implementação de programas de prevenção e da melhoria dos mecanismos de relato para esse tipo de episódio, as soldadas continuam sofrendo agressões e assédio sexual, e relutam em denunciar os incidentes”, concluiu um relatório de 2011 do Departamento do Trabalho.

Susan Burke, advogada de Washington que representa mulheres que alegam ter sido vítimas de agressão ou de assédio sexual, e que entrou com uma série de ações judiciais contra o Pentágono no ano passado, disse que, desde então, mais de 500 outras mulheres, incluindo Jennifer, e alguns homens, entraram em contato com ela para obter ajuda.

A Força Aérea e outros serviços militares instituíram programas para impedir os abusos e disciplinar aqueles que os cometem. Mas Jennifer, que ainda está na ativa na 20ª Divisão de Caças de Shaw, e outros da Força Aérea disseram que muitas mulheres são céticas a respeito das denúncias.

A sargento técnica da Força Aérea, Kimberly Davis, que atua na Base Aérea da Guarda Nacional de Stewart, em Nova York, disse que, depois que ela relatou ter sido estuprada, os oficiais da base, incluindo o oficial designado para lidar com casos de agressão sexual, conspiraram para encobrir o episódio. “O programa de combate às agressões sexuais da Força Aérea é uma piada”, disse ela.

Lola Miles, ex-mecânica de helicópteros da Força Aérea em Hurlburt Field, na Flórida, disse que, ao informar a seus oficiais superiores que um colega de trabalho havia batido nela repetidas vezes durante o trabalho e feito observações vulgares, eles fizeram piadas a respeito do ocorrido. Segundo Lola, em vez de tomar medidas contra seu colega de trabalho, os líderes de sua unidade tentaram desacreditá-la e obrigá-la a deixar a Força Aérea. Tanto ela quanto Davis entraram com ações judiciais contra a Força Aérea.

Jennifer, de 35 anos, trabalhou com esquadrões de caças dentro dos Estados Unidos e no exterior durante a maior parte de sua carreira. Seu relato de abuso sugere que, mais de 20 anos após Tailhook, o infame escândalo de 1991 que envolveu pilotos de caça da Marinha, pouca coisa mudou na insular cultura dos pilotos de caça.

“Eles não conseguem lidar com mulheres em esquadrões de caça”, disse Jennifer. “Os militares estão avançando e se livrando da prática do ‘não pergunte, não conte’, mas eles ainda não estão prontos para lidar com mulheres”.

“Os pilotos sabem que os consideramos nossos heróis”, acrescentou ela. “Isso é apenas um jogo para eles, na verdade”.

As alegações de Jennifer não podem ser confirmadas de forma independente, pois até agora ela não havia relatado os episódios formalmente – muitos dos quais aconteceram vários anos atrás. Diversas outras pessoas da Força Aérea que, segundo ela, sabiam de alguns dos episódios, incluindo seu marido, que é soldado da 20ª Divisão de Caças, recusaram-se a dar entrevista para esta reportagem devido ao receio de represálias. O comandante da divisão de Jennifer, coronel de Clay W. Hall, não abordou nenhuma informação específica relacionada ao caso da soldada, mas disse, em comunicado divulgado por escrito: “nós tratamos essas questões com a máxima seriedade. Todas as alegações relacionadas a má conduta são investigadas imediatamente e as medidas adequadas são tomadas”.

A reclamação administrativa por escrito apresentada por Jennifer à Força Aérea observa que ela constantemente recebia notas altas nas avaliações de desempenho. Ela ingressou na Força Aérea em 1995, após terminar o ensino fundamental em Salamanca, Nova Iorque. No ano seguinte, durante sua primeira missão temporária no exterior, na Base Aérea de Sembach, na Alemanha, ela foi agredida por um sargento no quarto dele após uma noite de bebedeira, segundo ela. Os colegas que a socorreram avisaram que o sargento agressor era conhecido por atacar soldadas jovens, disse Jennifer.

Durante 2001, em Kunsan, na Coréia do Sul, Jennifer disse que estava andando pelo bairro America Town, que concentra vários bares e fica perto da base em que ela servia, quando um grupo de pilotos de caça saiu correndo de um bar. Em seguida, eles  a empurraram para dentro do estabelecimento e a jogaram em cima de uma mesa. Cerca de 30 pilotos se aglomeraram em volta dela. Jennifer havia sido pega por uma “varredura”, ou seja, quando pilotos de caça agarram mulheres na rua para realizar “cerimônias de nomeação” ou para que elas participem de festas regadas a bebida, destinadas a celebrar o novo apelido de um piloto. “Alguns dos pilotos chamavam Kunsan de ‘a terra do faça o que você quiser’”, disse Jennifer. “Eles conseguiam sair impunes de qualquer situação”.

Nesse mesmo ano, enquanto ela participava de uma festa na casa do comandante da base, em Kunsan, vários pilotos a agarraram e a amarraram a um piloto com fita adesiva – apesar de ela ter resistido. Vinte ou mais pilotos se reuniram ao seu redor, mas nada foi feito para impedir.

Quando ela foi transferida para a Base da Força Aérea de Luke, no Arizona, Jennifer, até então casada com um soldado de sua unidade, participou, em 2003, de um evento familiar com seu esquadrão no estádio do Arizona Diamondbacks, onde um piloto da Força Aérea fez comentários sexuais para ela na frente de seu marido. O casal retornou à base e reclamou com o diretor de operações de seu esquadrão sobre o assédio sofrido por ela, disse Jennifer.

A reclamação não deu em nada. Mas quando assumiu seu próximo posto na Base de Shaw, um supervisor a puxou de lado e disse que ela tinha a reputação de ser franca demais. “Ele disse que queria se certificar de que eu havia entendido qual era o meu lugar no mundo, e caso contrário, as coisas poderiam ser mais difíceis para mim”, relembra ela.

Ela disse que, por fim, se cansou e decidiu vir a público depois de descobrir grandes coleções de pornografia e outros materiais sexualmente explícitos e ofensivos armazenados em computadores de sua unidade e em um cofre supostamente reservado para documentos confidenciais de Shaw. Ela reclamou a oficiais sêniores, que prometeram se livrar dos materiais – mas que não fizeram nada.

“Eu consegui servir o meu país, mas eu também tive que aturar um monte”, disse a sargento. “Eu quero que isso mude”.

*Soldada – que não tem patente de oficial.


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