Criança sonha voar, eu sonho correr, diz cartunista com esclerose múltipla
Rafael Corrêa, 39, já ganhou vários prêmios por seus quadrinhos e cartuns. Recentemente, um dos seus trabalhos tem emocionado o público no Facebook. Em um dos seus quadrinhos, ele descreve que sonhou que estava correndo. Diferente de quando era criança, que sonhava que estava voando, desta vez só percebeu que era sonho quando acordou. Diagnosticado com esclerose múltipla (a mesma da atriz Claudia Rodrigues) desde 2010, ele conta que, atualmente, fica cansado ao caminhar duas quadras com a ajuda de uma bengala.
O primeiro sintoma apareceu em 2008. Ele costumava ir a pé para o trabalho e, na volta, notou que um dos pés estava muito pesado. A consulta médica foi inconclusiva. Depois, em 2009, sua mão esquerda começou a falhar.Após uma ressonância magnética, houve o diagnóstico. O caso de Corrêa é raro, tem um desenvolvimento progressivo, não ocorre em surtos, como com a maioria das pessoas que têm a doença. “Vai indo aos poucos e de repente percebo que não consigo abrir uma tampa que conseguia há um mês”, conta. Há cerca de três meses ele parou de andar de bicicleta, seu meio de transporte, por notar que estava perdendo o equilíbrio. Também parou de praticar kung fu e anda apenas de táxi, pois os degraus dos ônibus são um desafio à parte.
No mês passado, quando começou a postar os quadrinhos “Memórias de um esclerosado”, ele recebeu diversas mensagens dizendo que o sonho era compartilhado por várias outras pessoas que também foram acometidas pela doença.“Foi uma surpresa, imaginei que ia ter umas 200, 300 curtidas, mas, em dois dias, foram 2000”, diz.
O quadrinho autobigráfico foi inspirado em autores como o francês David B., que desenhou “O Epilético”, sobre a doença de seu irmão. “Eu sempre quis contar histórias”, diz Corrêa, que fez seus primeiros quadrinhos aos dez anos inspirado na Turma da Mônica. “Talvez essa seja a história mais importante que eu vá contar na minha vida, sobre um personagem que conheço muito bem. É uma maneira de expurgar, colocar para fora o sentimento, vai ajudar na minha jornada de auto-conhecimento”.
Ele se diz contente com o feedback para um trabalho que faz sozinho, mas que não quer ter a responsabilidade de levantar uma bandeira dos portadores da doença, apesar de já ter organizado encontros com outros pacientes há alguns anos em Porto Alegre (RS), onde mora. “Muita gente me parabeniza, fala que o que eu estou fazendo vai ser útil. Não quero essa responsabilidade para mim, estou fazendo para contar minha história. Se isso vai ajudar as pessoas, ótimo, mas não é minha intenção. Vou falar de outras coisas também, como da minha infância, por exemplo”.
Apesar de passado momentos depressivos, Corrêa é otimista e continua lutando e se adaptando. Canhoto, precisa descansar a mão após cerca de 30 minutos de desenho. “Então eu uso a direita para meus trabalhos de designer”, diz. “Mas tem dias que não adianta, o traço não sai, então tem que esperar”. Ele conta que seu traço, que já era minimalista, se tornou mais econômico e também passou a incorporar alguns mais “tortinhos”.
A doença
A esclerose múltipla é uma doença autoimune, ou seja, o sistema imunológico ataca o próprio corpo por estar desregulado. Neste caso, o alvo do ataque é o cérebro, mais especificamente a bainha de mielina, envoltório dos axônios, feixes de ligação entre os neurônios. Quando há problemas nesta ligação, os neurônios têm dificuldade de enviar ordens de movimento à medula que, por consequência, não chegam aos órgãos como pernas e braços.
“É uma inflamação no cérebro que vai e volta na maioria dos casos. Quando ocorre, pode deixar lesões”, explica Dagoberto Callegaro, professor de neurologia e coordenador do Ambulatório de Esclerose Múltipla da Universidade de São Paulo. A esclerose múltipla acomete jovens entre 20 e 40 anos e os primeiros sintomas são o formigamento de um pé, uma mão, uma visão turva por alguns dias. “Se não há outra causa, como, por exemplo, ter caído algo em cima do pé, é preciso procurar um neurologista, pois o sintoma passa e depois voltará”, diz Callegaro. Segundo ele, a incidência é duas a três vezes maior em mulheres do que em homens e, atualmente, há cerca de 12,5 mil pessoas com diagnóstico na região Sudeste.
Não se trata de uma doença degenerativa, pois se os surtos forem contidos e não ocorrerem mais lesões, a pessoa pode ter uma vida normal. Mas as lesões não são reversíveis. A doença atinge principalmente braços e pernas, o equilíbrio e a visão. Ela não tem relação com perda de memória, popularmente conhecida como esclerose, geralmente de pessoas de idade avançada. A palavra significa “enrijecimento” em grego e não existe essa denominação de doença na Medicina. Neste caso, a fama se deve à arterioesclerose ou esclerose vascular, pois acreditava-se no passado que, com a idade, os vasos cerebrais enrijeciam. Mesmo essa doença é mal interpretada, pois é responsável por apenas 20% dos esquecimentos. Mesmo assim, em 2013, pesquisa revelou que 64% dos brasileiros achava que esclerose múltipla era uma doença associada à senilidade.
Tratamento e causas
Há dois tipos de tratamento, um tradicional com drogas imunossupressoras e outro com reposição de vitamina D. No tradicional, o tratamento é feito com drogas que inibem a ação do sistema imunológico, como os corticoides. Algumas delas são aplicadas durante a crise e outras para prevenir a inflamação.
No tratamento com a vitamina D, o foco é a regulação do sistema imunológico por meio da vitamina D, desenvolvido pelo médico brasileiro Cícero Galli Coimbra, professor da Unifesp. “Chamamos de vitamina D, mas é um hormônio. Ele é o principal regulador do sistema imunológico”, explica Coimbra. A vitamina D está na forma inativa no corpo e precisa ser ativada por nossas células por meio de exposição ao sol ou ingestão. O sistema de ativação é lento nas pessoas que têm doenças autoimunes, como esclerose múltipla, artrite reumatoide, lúpus, tireoidites, psoríase, vitiligo, entre outras. No tratamento, o neurologista criou uma maneira de calcular quanto cada pessoa precisa repor para o sistema imunológico funcionar normalmente de novo.
“Vivemos uma pandemia mundial de deficiência de vitamina D”, diz Coimbra. “Isso tem aumentado os casos de esclerose múltipla e várias outras doenças como autismo”. Também está associada a demência, Parkinson e Alzheimer. “Há pesquisas que mostram que, se toda a população adulta tomasse 5 mil unidades de vitamina D por dia, metade do que é produzido por apenas 20 a 30 minutos de exposição solar, os novos casos de câncer seriam reduzidos em até 50%”.
Ainda não existe cura para a esclerose múltipla, mas, se diagnosticada precocemente, na maioria dos casos é possível controlar a doença. Há ainda a predisposição genética em famílias com casos de doenças inflamatórias como psoríase, vitiligo, tireoidites, artrite reumatoide, etc.
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