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Com tratamento preventivo, Aids não assusta mais San Francisco (EUA)

Efe
Imagem: Efe

Corine Lesnes

26/11/2015 06h00

Nadji Dawkins, 28, exibe um sorriso mais largo que a aba de seu boné. "Gosto de fazer amor do jeito como gosto de fazer amor", ele diz. Traduzindo: sem preservativo. Antes esse era um comportamento de alto risco, mas nos últimos dois anos o jovem funcionário de correios passou a não se afligir mais quando ele "conhece alguém". Ele adotou a PrEP, o tratamento de "profilaxia pré-exposição", que consiste em um comprimido que permite que os soronegativos tenham relações desprotegidas sem correrem o risco de serem contaminados pelo HIV.

Barbara Garcia é a diretora de serviços de saúde pública de San Francisco (EUA), uma senhorinha que supervisiona dois hospitais, 20 clínicas, 8.000 funcionários e um orçamento de US$2 bilhões (R$7,5 bilhões). Ela também gosta da PrEP. Desde 2012, a prefeitura passou a recomendá-la a pessoas que possuem comportamentos de risco.

O número de contaminações pelo HIV diminuiu 30%, tendo permanecido estável em todos os Estados Unidos. "É um ponto de virada", ela comemora. De fato, uma etapa tão significativa quanto a descoberta do vírus, em 1983, ou o surgimento das triterapias em 1996. "Uma nova era começou", atesta Steve Gibson, diretor da clínica Magnet, um programa da San Francisco AIDS Foundation. "Chegamos ao estágio do fim do medo."

San Francisco respira aliviada, libertando-se após 30 anos sob o jugo do vírus. Na comunidade gay, a empolgação é palpável. Filas são formadas desde a manhã em frente à Magnet, no bairro do Castro, a "república gay" de San Francisco, onde tremula a bandeira arco-íris acima da estação do metrô, enquanto na calçada as passagens para pedestres levam as mesmas cores do arco-íris. "Por toda nossa vida a expressão mais íntima de nós mesmos se baseou no medo", conta Steve Gibson. "Poder se libertar disso é uma experiência muito forte."

A clínica recebe de 40 a 70 pessoas a cada dia. O balanço anual foi de 10 mil pacientes em 2014 (ante 1.200 em 2003), 9.608 testes de HIV, e 700 soronegativos em tratamento PrEP, que já em sua primeira visita recebem uma caixa de 30 comprimidos Truvada, a pílula milagrosa que deve ser tomada uma vez por dia. Na Kaiser, a gigante dos seguros de saúde particulares que administra a principal clínica para HIV de San Francisco, com 3.000 pacientes, cerca de 1.000 homens estão inscritos para a profilaxia, com uma fila de espera de três semanas para uma consulta. "É como para os novos iPhones. Alguns acampam em frente à Apple Store para terem os primeiros, e depois todo mundo quer", sorri o Dr. Brad Hare.

Foco da revolução sexual dos anos 1970, San Francisco foi "o epicentro da epidemia", lembra Barbara Garcia. A cidade norte-americana teve 25 mil mortos desde 1982, sendo 1.641 em 1992, o ano mais letal. Hoje, tem a ambição de reduzir o número de contaminações em 90% até 2020, sendo que conta com 16 mil pessoas que convivem com o vírus (58% das quais têm mais de 50 anos). A PrEP é essencial para esse plano. Dois estudos, um inglês ("Proud"), o outro francês ("Ipergay" ou PrEP "por demanda" que não requer uma ingestão diária de Truvada), demonstraram sua eficácia entre os homens que mantêm relações homossexuais. Em ambos os casos, o tratamento resultou em uma redução de 86% no risco de infecção.

Perda de interesse pelos preservativos

A PrEP foi aprovada pela FDA (a agência americana que regula os medicamentos) no final de 2012. No começo, os adeptos eram vistos como depravados, ou quase. Eles eram chamados de "Truvada whores" ("putas do Truvada"), e os homens escondiam seus frascos de medicamentos. Os preconceitos logo caíram. "A PrEP entrou na cultura popular, e chegou a ser mencionada em uma série de TV", relata Ifeoma Udoh, diretora da clínica Crush de Oakland, que recebe um subsídio público de US$20 milhões para incentivar o tratamento entre jovens vindos das minorias.

Entre os médicos também "havia reservas", relata Stephanie Cohen da City Clinic, uma das três clínicas que participaram do primeiro estudo nacional nos Estados Unidos. "As pessoas trabalharam por anos com o modelo do preservativo como ferramenta de prevenção. Foi preciso uma mudança de cultura." Mas os médicos notaram a perda de interesse pelos preservativos. "As pessoas nos perguntam por que não se usa mais o preservativo o tempo todo", diz indignado Nathan Allbee, 36, de longa barba negra e uma pomba tatuada no braço. "Para aqueles que conseguem, ótimo! Mas não é o caso de todo mundo. A prova é que ainda houve 302 contaminações aqui no ano passado."

Cerca de 6.000 pessoas estão passando pela PrEP em San Francisco, o que faz da cidade uma espécie de laboratório mundial do tratamento. "Até então eu só tinha duas opções: ou usar camisinha o tempo todo, ou confiar em meu parceiro", relata Nathan. "Com a PrEP, não tem mais a ver com o outro. Tem a ver comigo". Os soronegativos assumiram o controle de sua segurança. Já os soropositivos se sentem menos banidos da comunidade. A PrEP "tirou o HIV das conversas", afirma Matthew Sachs, 29, que optou por tomar o Truvada ainda que a infecção de seu parceiro seja indetectável no sangue, e portanto praticamente sem risco de contágio.

O custo do tratamento é proibitivo --de US$8.000 a US$14 mil por ano (até R$ 52 mil), mas é coberto quase que integralmente pelas seguradoras. E, para aqueles que não possuem seguro, por um fundo de assistência financiado pela fabricante do Truvada, o laboratório Gilead.

Os críticos estão preocupados com o risco de doenças sexualmente transmissíveis. Barbara Garcia, diretora da saúde pública, reconhece isso sem reservas. "Nós salvamos vidas, mas as infecções sexualmente transmissíveis estão em crescimento." Nenhum estudo confiável mediu a incidência da PrEP. Segundo questionários coletados pela Kaiser, 42% dos usuários relatam uma redução no uso do preservativo. "Estamos testando as pessoas com muito mais frequência. É normal que estejam detectando mais infecções", responde o Dr. Hare, da Kaiser.

As estatísticas da clínica Magnet apontam um aumento de 32% nos casos de gonorreia em 2013 e de 20% nos de sífilis (1.014 casos em toda a cidade). Mas, como diz Nadji Dawkins, hoje o importante não é isso. "É claro que temos as DSTs. Mas o negócio sério sempre foi o HIV. Então nossa geração não precisa mais se preocupar com isso."