Miséria e lixo ajudam a disseminar o Aedes em favela do Recife
Ao entrar na maior palafita do bairro do Pina, na região sul do Recife, a impressão que se tem é que um mundo paralelo surge, espremendo cem famílias em um corredor erguido sobre tábuas no rio Capibaribe. O mau cheiro dá as boas-vindas a quem chega e precisa se equilibrar entre tábuas tortas e em falso.
Se sobreviver em um lugar marcado pela extrema miséria já é um desafio por si só, enfrentar a tríplice epidemia de zika, dengue e chikungunya é praticamente uma batalha perdida.
No local não há banheiro, coleta de lixo e as visitas de agentes de saúde e de endemias --dizem os moradores-- são raras. Não há também água encanada, e a energia só chega por causas de ligações clandestinas.
Ao entrar no lugar, veem-se muitos baldes para armazenar água e lixo por toda a parte, que também guardam água parada, o lugar ideal para a fêmea do mosquito colocar seus ovos. Ali não faltam lugares para esses mosquitos nascerem.
Segundo o presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), Gastão Wagner de Sousa Campos, apesar de viverem à beira de um rio --local onde o Aedes não se reproduz--, as condições geradas pelo homem no local tornam o ambiente perfeito para focos do mosquito.
“O Aedes aegypti não reproduz em rio, em água corrente; mas a beirada do rio forma água parada em que ele pode reproduzir. Todo o estancamento que o lixo vai produzindo, e também as substâncias dele -como garrafas PET, móveis--, viram criadouros e dão a condição de reprodução ao Aedes e a outros mosquitos”, afirma.
Campos afirma ainda que é comum regiões pobres apresentarem maior incidência de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. “Tanto que a incidência da dengue, da zika e da chikungunya, como da microcefalia, é maior no subúrbio, na periferia. As regiões onde sempre temos maior incidência são as que tem piores condições urbanas, que não tem coleta de lixo regular, esgoto a céu aberto, água servida na rua”, explica.
Favela do Sossego
A comunidade, apelidada pelos moradores de “favela do Sossego”, joga todo o lixo que produz e dejetos humanos no rio Capibaribe. Por baixo dos barracos de madeira, há uma enorme quantidade de lixo que boia sobre as águas poluídas.
As palafitas são fincadas às margens do rio entre as pontes que dão acesso do centro da capital pernambucana à zona sul, a poucos quilômetros da badalada praia de Boa Viagem. Ficam ao lado do maior shopping da cidade e atrás de um restaurante de luxo especializado em frutos do mar e uma marina repleta de barcos caros. Outras 58 comunidades também existem sobre o rio.
Não há dados de quantas pessoas na comunidade já ficaram doentes com tríplice virose. Especialmente porque muitas pessoas ficam doentes e não procuram serviços de saúde --que segundo eles são longe e lotados.
Repelente e doenças
Vivendo nesse contraste social, Valmir Severino Moura, 32, conta chegou ao local há seis meses. Veio morar com o irmão pela oportunidade de não pagar moradia e tem o repelente como um item de primeira necessidade.
“Tem que se proteger dos mosquitos, que senão a gente é comido por eles. Sem contar que pode adoecer, né? Se adoecer e for esperar atendimento médico aqui, morre”, diz o morador, que usa um repelente sem rótulo “dado por uma pessoa do interior.”
Não é difícil encontrar pessoas que já ficaram doentes no local. Ana Carla da Silva, 30, conta que, no final de 2015, teve alguma das doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti. “Sei que foi febre e muita dor no corpo. Acho que foi chikungunya”, conta.
A pescadora Jane Cleide, 20, confirma que o lixo e o mau cheiro causado por ele é desafio à parte para os moradores. “Nunca houve coleta de lixo. Mosquito aqui é problema pequeno, e os ratos e escorpiões?”, diz.
A jovem Leidiane da Silva, 20, tem um filho com menos de um mês de vida. Também tem outro filho de dois anos, o pequeno João Felipe, que nunca usou fraldas na vida e já caiu no rio duas vezes --numa delas teria sido salvo pelo cachorro do vizinho.
“Ninguém aqui nos ajuda! A verdade é que somos esquecidos: não tem médico, não tem direito a nada. Agente de saúde raramente vem, e quando vem não tem nem o que fazer. Mandam fazer as necessidades da gente em um terreno que é do outro lado, mas ninguém vai, não. Já está tudo errado aqui mesmo, pra quê ir longe?”, questiona.
Funcionário de um lava-jato, Felipe da Silva, 23, e a mulher Josélia Lima, 26, também têm um filho com menos de um mês de vida e conta que os moradores improvisaram canos para levar água aos moradores.
Quando a reportagem chegou, em plena tarde de uma terça-feira, Felipe bebia com amigos e desabafou: a angústia de esperar uma notícia pela sonhada moradia é o martírio que enfrenta.
“Já vieram aqui, fizeram cadastro e nunca nos tiraram. A gente não tem a menor ideia quando vai sair, só escutamos a histórias de que estão construindo casas, mas não temos notícia certa. É muito triste”, conta.
Casas em construção
Em resposta ao UOL, a Secretaria de Habitação do Recife informou que está realizando um levantamento em toda a cidade --que será concluído em dezembro. Ele vai servir de base para um plano de habitação de interesse social.
A pasta também diz que há obras em andamento para moradores de palafitas. “Estão em execução projetos habitacionais para abrigar 832 famílias de áreas ribeirinhas do rio Capibaribe, localizadas na área central da cidade. Desse total, estão em obras, com previsão de conclusão até junho, 160 apartamentos do conjunto habitacional Travessa do Gusmão, no bairro dos Coelhos, enquanto se negocia reajustes contratuais com as empresas responsáveis visando a retomada das obras dos conjuntos Sérgio Loreto (224 apartamentos) também nos Coelhos, e Vila Brasil 1, na Ilha Joana Bezerra (128 apartamentos)”, explica.
Diz também que outro conjunto habitacional, o Vila Brasil II, em Joana Bezerra, com 320 apartamentos, aguarda a retomada do programa federal “Minha Casa, Minha Vida” para ser iniciado.
Procurada pela reportagem, a Secretaria de Saúde do Recife não respondeu aos e-mails com pedido de respostas sobre as ações de saúde, prevenção e fiscalização no local.
Segundo o último boletim da secretaria, foram 2.720 casos de dengue, zika e chikunguya em 2016, até o dia 13 de fevereiro. Até o último boletim do Ministério da Saúde foram 1.672 casos de microcefalia notificados na capital pernambucana.
Em seu site, a secretaria informa que, em 2016, foram vistoriados 313 mil imóveis residenciais, comerciais e prédios públicos.
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