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Depoimento: médica confunde esquerda e direita e opera lado errado

The New York Times
Imagem: The New York Times

Abigail Zuger

17/08/2015 10h52

Eu não estava presente quando ocorreu um incidente na radiologia, mas ouvi tudo a respeito. O paciente com o calcanhar inchado observava intrigado enquanto a técnica se preparava para tirar um raio-X do outro pé.

O paciente mostrou para a técnica que ela estava mexendo no tornozelo errado. Ela afirmou que estava fazendo o que a médica havia pedido. Eles discutiram, ficaram nervosos e, infelizmente, o poder triunfou sobre a lógica e os exames foram diligentemente realizados no tornozelo errado.

Os resultados, segundo a médica, estavam normais.

A médica era eu. Alguns dias depois, o paciente me fez um relato completo do desastre e foi embora mancando para nunca mais voltar. Eu não poderia culpá-lo: fiquei assustada, mas não estava surpresa. Eu temia que isso voltasse a acontecer mais cedo ou mais tarde.

Eu faço parte dos cerca de 15 por cento da população que faz uma confusão profunda entre direita e esquerda, uma bobagem irrelevante da mente, até a hora que você comete um erro de verdade. Quando pedem para eu levantar a mão esquerda, eu levanto a direita ou a esquerda, sem pensar. Quando sou confrontada com a extremidade de um paciente, preciso me concentrar e realizar uma operação mental complicada e demorada para anotar corretamente no prontuário.

Felizmente, eu não trabalho com objetos cortantes, então quando cometo um erro apressado, ele fica só no papel. Às vezes minhas anotações estão incorretas e a história do raio-X sempre me chateou, embora tenha ocorrido há várias décadas. Desde então, confiro tudo mais de uma vez e, até onde eu sei, aquilo nunca voltou a acontecer.

Se eu fosse cirurgiã, imagino que viveria em um estado de pânico constante, assim como as pessoas ao meu redor.

Há muito tempo o problema das cirurgias realizadas do lado errado assombra a medicina – provavelmente desde que a invenção da anestesia impediu que o paciente participasse ativamente do processo. Esse é um dos muitos desastres que incluem operar o lado errado do corpo, fazer o procedimento errado no parte certa e fazer tudo certinho, mas no paciente errado.

Na linguagem corporativa moderna, eles são conhecidos como eventos "nunca": nunca devem acontecer.

Ainda assim, eles acontecem. São pouco frequentes, mas persistentes o bastante para que há pouco mais de 10 anos a Comissão Mista, que credencia e certifica organizações e programas de saúde, publicou um protocolo que visa eliminar esses erros. Pouco antes de uma operação, a equipe cirúrgica precisa revisar várias vezes quem está sendo tratado e em qual parte do corpo; essa parte é marcada, sempre que possível. Essas medidas ajudam, mas não evitam por completo os eventos "nunca".

Quando essas proteções falham, as análises muitas vezes revelam problemas difíceis de resolver por meio de protocolos. Em um caso, por exemplo, um cirurgião em formação que estava prestes a colocar o bisturi do lado esquerdo foi lembrado por um supervisor a de que o problema era no lado direito.

O prontuário dizia "esquerdo"; a voz da experiência e da autoridade dizia "direito"; e a cirurgia foi realizada do lado direito. Embora aquele fosse, de fato, o lado errado.

As estatísticas citam erros de comunicação como o principal culpado de cirurgias realizadas do lado errado. Não existem dados sobre com que frequência o meu tipo de confusão entre direita e esquerda complica a situação, mas podemos presumir que esse é um fator agravante. Conforme os comentaristas destacam, os pacientes na sala de operação podem estar de barriga para cima, de barriga para baixo, ou de lado; o corpo do paciente quase sempre está coberto por panos cirúrgicos; e a mesa de operação pode ser rotatória, o que é terrivelmente confuso para pessoas com problemas de lateralidade.

Até agora, ninguém sugeriu que os protocolos que evitam cirurgias do lado errado sejam aplicados lá no começo – nas primeiras entrevistas de emprego, por exemplo, ou nos vestibulares de medicina, com entrevistadores que questionam se você sabe diferenciar a esquerda da direita. Eu me pergunto se isso seria discriminação: rotular negativamente uma minoria significativa dos possíveis candidatos, evitar que cheguemos à sala de operação, ou talvez nos banir definitivamente da área de saúde?

Um grupo de pesquisadores britânicos deu um pequeno passo nesse sentido. Depois de estudar por algum tempo a confusão entre direita e esquerda em meio aos estudantes de medicina, eles propuseram que os estudantes passem por testes formais de reconhecimento de direita e esquerda no início de sua formação para que ao menos tenham consciência do problema e possam se preparar.

Parece razoável, embora não saibamos onde isso vai parar. Afinal, existem inúmeros tiques neurológicos entre os estudantes. O daltonismo, por exemplo, é bastante comum, mas pode complicar ou mesmo destruir uma carreira em patologia já que a capacidade de distinguir cores sob o microscópio é fundamental.

Além disso, há também a prosopagnosia, ou seja, a profunda incapacidade de se lembrar de rostos. Uma colega minha com essa condição sempre teve problemas para fazer amizade com os pacientes. E, em um longo ensaio para a New Yorker, Oliver Sacks relatou os impactos profundos da prosopagnosia em suas amizades e oportunidades comerciais.

Contudo, Sacks nunca sugeriu que isso tivesse atrapalhado suas habilidades médicas -- provavelmente ele tomou todas as precauções para que nenhum evento "nunca" acontecesse. Aparentemente, esse problema, assim como outros, é perfeitamente contornável com um pouco de autoconsciência e determinação de nunca confiar nos instintos falíveis.