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Da Bélgica a Gaza: O trajeto de um fuzil europeu até chegar às mãos de extremistas

Membro da Brigada Al-Quds mostra seu fuzil belga - Brigada Al-Quds/Divulgação
Membro da Brigada Al-Quds mostra seu fuzil belga Imagem: Brigada Al-Quds/Divulgação

08/12/2015 15h57

Há três anos, especialistas em armas identificaram um fuzil belga de última geração nas mãos de militantes islâmicos na faixa de Gaza.

Mas como uma organização listada como terrorista pela União Europeia e pelos Estados Unidos conseguiu esse armamento? O especialista Nic Jenzen-Jones* e o repórter da BBC Thomas Martienssen rastrearam a jornada do fuzil.

Em 2 de outubro de 2012, a Brigada Al-Quds, braço armado da Jihad Islâmica, tomou as ruas de Rafah, no sul de Gaza, para marcar o 17º aniversário do assassinato de um integrante do grupo pelo Mossad, o serviço de inteligência de Israel.

Trata-se de um evento anual --uma parada militar onde os integrantes costumam exibir armas e munições mais recentes. E certamente havia algo novo naquela parada de 2012.

Entre o arsenal habitual de fuzis AK, metralhadoras de antigos regimes comunistas do Leste Europeu e rifles chineses, havia dois fuzis automáticos bem mais raros naquelas bandas --o belga F2000 e o russo AK-103.

Até então, essas duas armas raramente eram vistas com um mesmo grupo. Mas na guerra civil na Líbia, um ano antes, um F2000 Standard com lançador de granada LG1 havia sido documentado nas mãos de grupos favoráveis ao ex-líder Muammar Gaddafi e, depois, de forças rebeldes --bem como uma variação do AK-103, o AK-103-2.

Então como essas armas chegaram à Líbia, e como foram de lá até Gaza? Um ex-rebelde líbio, que aqui será chamado de Ahmed, pode contar parte desta história.

A origem das armas

Após a queda de Trípoli para forças anti-Gaddafi, em agosto de 2011, a maior parte das facções rebeldes mudou o foco para o sul do país, para as cidades de Sirte e Sabha. Um dos últimos bastiões fiéis a Gaddafi, Sabha era o alvo seguinte para Ahmed e sua milícia.

Mas os rebeldes chegaram tarde. Sabha foi liberada em 20 de setembro e eles só aportaram por lá dois dias depois. Perderam a maior parte da agitação, porém ouviram muitas histórias de um ex-estudante chamado Ali, jovem como Ahmed. Um desses casos era sobre um incidente registrado no dia anterior, no subúrbio sul de Sabha.

"Nós mantínhamos um checkpoint logo na saída de Sabha. Um carro chegou e o vidro se abaixou", disse Ali. "O homem disse ser um oficial da 32ª Brigada e pediu que o deixasse passar. Não tínhamos bandeiras revolucionárias na época, então eles devem ter pensado que éramos forças fiéis a Gaddafi."

Ali decidiu capturar o oficial e sua equipe, bem como seu armamento pessoal --dois modernos fuzis AK, uma pistola dourada e fuzis estranhos que chamavam, erroneamente, de "o FN francês".

Canais legais

A venda de armas belgas ao regime de Khaddafi havia sido acertada em maio de 2008.

A fabricante, FN Herstal, baseado em Liège, se comprometera a entregar 367 fuzis F2000 com lançador de granada, 367 submetralhadoras P90, 367 pistolas 5.7, 50 revólveres Browning "Renaissance", 30 metralhadoras leves Minimi, 2.000 lançadores não-letais FN 303 e mais de 1 milhão de diferentes munições. O pacote sairia por mais de 12 milhões de euros.

A ONU baniu a venda de armas à Líbia por muitos anos, mas o país africano voltou a ter algum crédito na comunidade internacional quando prometeu destruir suas armas químicas e descartar a produção de armamentos de destruição em massa. O embargo da ONU foi levantado em 2003, e um veto semelhante da União Europeia caiu em 2004.

As armas belgas eram necessárias, segundo o governo da Líbia, para escoltar um comboio de ajuda humanitária até a conflituosa região de Darfur, no Sudão. A FN Herstal, maior exportadora de armas militares pequenas da Europa, diz que a venda foi legal, e que não foi a única empresa europeia a fazer negócios com a Líbia na época.

Em seis anos após o fim do embargo europeu, a União Europeia já havia concedido licenças de venda de armas para a Líbia no valor de 834 milhões de euros. Empresas no Reino Unido e na Itália estavam entre aquelas que aproveitaram a onda.

Em novembro de 2009, as armas do acordo belga desembarcaram na Líbia e foram equipar a 32ª Brigada, conhecida como brigada "Khamis" por ser comandada pelo filho mais novo de Gaddafi, Khamis Gaddafi.

Segundo a ONG Human Rights Watch, a brigada cometeria uma série de violações de direitos humanos, entre elas a execução sumária de 45 presos em Salahaddin, perto de Trípoli, em 23 de agosto de 2011.

Conexão russa

A Rússia também vinha fornecendo armas à Líbia.

No final de 2003 ou início de 2004 --pouco depois do fim do embargo-- a Líbia havia começado negociações para comprar um leque amplo de armas e munições, incluindo armamento antitanque e sistemas de defesa aérea portátil (Manpads). Um desses acordos incluiu o fuzil automático AK-103-2.

Um relatório obtido pela consultoria em inteligência Ares (Armaments Research Services), pela Human Rights Watch e por outras ONGs revelou que a Líbia fez pelo menos três pedidos por fuzis AK-103-2 em um contrato firmado em abril de 2004.

O primeiro pedido, em setembro de 2004, incluía 60 mil fuzis, cada um com quatro pentes, baioneta, kit de limpeza, alça e recipiente de óleo. Mas quando a guerra civil estourou na Líbia em 2011, já havia mais de 200 mil desses modernos fuzis espalhados pelo país.

Posteriormente, quando o conflito esfriou, Ahmed, Ali e seus companheiros combatentes entregaram a maioria de suas armas, incluindo um F2000, ao novo governo.

Última viagem

O segundo fuzil F2000 que Ali tinha capturado acabou sendo repassado a um traficante de armas em Misrata chamado Khaled, que estava angariando armamentos para doar a militantes na faixa de Gaza.

Localizado pela consultoria Ares, por meio de uma fonte conhecedora do mercado de armas da Líbia, Khaled confirmou ter sido responsável por um envio de armas para Gaza, que incluiu um fuzil F2000 e um AK-103-2, entre outros modelos de AK-103, todos enviados gratuitamente.

"Enviamos para ajudar o povo de Gaza", disse ele.

Assim como o fuzil belga FN Herstal F2000 tinha sido identificado incorretamente pelos rebeldes na Líbia como a "FN francesa", o AK-103-2 foi classificado em 2012 em Gaza como o "israelense Kalashnikov". Khaled e seus amigos se deleitaram ao fornecer a militantes palestinos o que imaginavam ser uma arma israelense.

A Brigada Al-Quds continua a exibir essas armas. O AK-103-2 e o F2000 foram documentados em sua posse em agosto de 2015. O grupo confirmou recentemente que ainda dispõe do F2000.

Fuzis F2000 também têm aparecido nas mãos de militantes islâmicos na Península do Sinai, no Egito. Como aqueles em Gaza e na Líbia, os modelos receberam o lançador de granadas LG1 debaixo do cano.

Talvez não seja surpresa, dado o volume importado pela Líbia, mas os fuzis AK-103-2 são comuns no interior do país --foram empregados no assassinato, pelo grupo autodenominado Estado Islâmico, de 30 cristãos etíopes na Líbia em abril-- e têm proliferado por toda a região do Oriente Médio e do norte da África.

Integrantes do Hamas têm sido fotografados com essas armas, assim como combatentes palestinos em comitês de resistência popular e na Frente Popular para Libertação da Palestina.

Relatórios de um painel da ONU sobre a Líbia indicam, entretanto, registros da presença do AK-103 também no Mali, na Tunísia e na Nigéria.

Mas muitas outras armas, não apenas o F2000 e e AK-103-2, foram saqueadas de estoques da Líbia ou dominadas por milícias durante a guerra civil da Líbia. O regime líbio tinha se armado até os dentes e seu rápido colapso no curto e sangrento conflito de 2011 fez do país uma grande liquidação de armas para militantes em todo o mundo.

*Nic Jenzen-Jones é diretor da consultoria de inteligência Ares (Armament Research Services)