'É como estar sentado numa bomba': o terremoto à espreita de Istambul

Quando Tolga Sahin viu o seu teto desabar pela segunda vez, ele entendeu que se mudar de cidade era uma questão de vida ou morte. Na primeira vez que aconteceu, não deu muita importância. "Poderia acontecer com qualquer pessoa". Mas quando o reboco tornou a ceder sem que nada tivesse acontecido, ele percebeu que toda a estrutura do prédio estava comprometida. Não restava dúvida de que, quando o terremoto enfim chegasse a Istambul, seria ele por baixo não só do reboco, mas do prédio inteiro.

É em construções como essas, à beira do colapso, que vivem muitas das 16 milhões de pessoas - ou 20 milhões, se considerarmos os apontamentos extraoficiais que incluem os imigrantes. É uma população que equivale à região metropolitana de São Paulo, e todos pisando sobre a mesma falha tectônica. Os presságios de um terremoto estimado em 7,2 de magnitude na escala Richter - equivalente ao que abalou o Haiti em 2010 - são tema frequente na cidade; entre os especialistas, não é uma questão de 'se', mas 'quando' ocorrerá.

Deniz Ertuncay, mestre em sismologia pela Universidade do Bósforo, em Istambul, e atualmente pesquisador pós-doutor pela Universidade de Triste, na Itália, afirma que o desastre acontecerá "ainda nesta vida" - de quem é essa vida não está claro, mas é futuro próximo. E, se por um lado, as 20 milhões de pessoas querem adiar ao máximo possível o terremoto, ele diz que Istambul enfrenta um dilema: "Quanto mais esperar, mais estresse vai acumular, e portanto maior será o dano".

Explicando o terremoto

A falha de Mármara rompeu em 1509 e depois em 1766, um intervalo de 257 anos. O ano de 2023 marcou este mesmo intervalo. Agora, a cada dia que passa, aumentam as chances da bomba-relógio estourar. Ertuncay explica que um terremoto acontece quando o estresse acumulado nas falhas tectônicas é maior do que a rocha consegue suportar, e então ela se rompe, gerando tremores.
Estimar com precisão os terremotos é um trabalho difícil. Recorrência histórica, movimento geológico e rigidez das pedras são alguns dos fatores que pesquisadores usam para fazer previsões, e que podem variar de método para método. Assim, é impossível saber com precisão a data, a intensidade e o local exato.

O que se sabe de fato, como o sismólogo explica, é que os terremotos acontecem em ciclos. Na região norte do país, vários tremores aconteceram de um século para cá. "Agora, Istambul é o único candidato esperando o terremoto acontecer", diz Ertuncay. Em torno da cidade há três falhas suscetíveis à quebra, e a depender de qual delas - e quantas delas - romperem, o cataclismo pode ser irreparável.

Um desastre sem precedentes

Nas contas da prefeitura de Istambul, as expectativas de mortes do terremoto giram em torno de 14 mil, além de outros 120 mil feridos. Ertuncay, por outro lado, discorda: "Para mim, os números estão baixos". Segundo ele, o terremoto no sul da Turquia em fevereiro de 2023, que deixou 50 mil mortos e milhões de desalojados, pode dar indícios do que se espera na maior cidade do continente europeu.

Muitos dos edifícios que desabaram lá supostamente seguiam as regulações mais rígidas de prevenção a terremotos. "Construído de acordo com as regulações de terremoto mais recentes" e "qualidade de primeira", era o que advertia a construtora de um prédio que agora está em ruína, de acordo com apuração da BBC.

Para Ertuncay, isso acende um alerta assustador: se houve corrupção e negligência lá - essa é a suspeita por trás do colapso -, nada impede que o mesmo tenha ocorrido em Istambul. Contando com 47 arranha-céus, o desastre, se seguir as mesmas proporções do sul da Turquia, pode ser muito maior do que o estimado. "Na teoria, todos eles são à prova de terremoto. Assim como eram muitos dos prédios [que desabaram] no sul da Turquia, construídos há três, quatro anos", conta o sismólogo.

Istambul
Istambul Imagem: Reprodução/Lucas Tôrres
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Ele explica que prédios erguidos com falhas na estrutura se tornam ainda mais perigosos. Ao invés de colapsar em si mesmo, eles podem cair para o lado, como num "efeito de Jenga", em referência ao famoso jogo de empilhar tijolinhos. O resultado é amedrontador: "Não vai matar apenas as pessoas no prédio, mas também todos em torno, então fica ainda mais caótico. Mesmo para a defesa civil, porque se você for lá, não tem como saber o que aconteceu, é impossível encontrar alguém vivo".

"Ninguém quer pensar que esta mesma estatística vai se aplicar ao terremoto de Istambul, porque senão, vai ser demais", afirma ele. Isso se tratando dos edifícios novos e que supostamente não oferecem risco; outra grande parte, porém, são antigos, mal construídos e condenados a cair.

Ao acompanhar uma equipe de engenheiros em Istambul, o sismólogo conta que viu paredes feitas de areia do mar em vez de concreto, estratégia usada para baratear a construção. "Coletamos exemplos de prédios antigos e eles são uma porcaria completa".

Castelos de areia

Tolga Sahin, após o reboco cair, olhou para a estrutura exposta e ficou incrédulo: "Podia ver conchas do mar no teto". Descobriu que vivia em um prédio à base de areia. Hoje mora em Antália, sul da Turquia. Com a ajuda da mãe e irmão que vivem lá, largou uma vida inteira em Istambul por medo do terremoto.

A inevitabilidade do desastre começou a se tornar demais para ele. Ainda traumatizado pelo terremoto de 1999, que deixou 17 mil mortos nos arredores de Istambul, a recente catástrofe na região turco-síria em fevereiro de 2023 foi a gota d'água.

Não foi uma decisão fácil: "Istambul é o lugar onde eu joguei futebol quando eu cresci, onde eu amei pela primeira vez, onde beijei pela primeira vez". Ele conta que ainda não se sente em casa em Antália, mas a perspectiva de morrer a qualquer momento sem ter a quem recorrer perturbava sua mente. Com dificuldade de dormir e seguir com a vida, Tolga optou pela única forma verdadeiramente segura de se precaver de um terremoto: fugindo dele.

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O mesmo fez Sinan İnanç Başören, que agora mora em İzmir, leste da Turquia. O tema do terremoto era recorrente na sua família, mas a incerteza da mudança falava mais alto. "Mas depois que eu recebi um relatório do município dizendo que o nosso apartamento em Istambul não era seguro em termos de terremoto, eles aceitaram mudar". Com a inflação em alta no país, tiveram que desembolsar cerca de US$ 4 mil apenas para realizar a mudança.

Entre a cruz e a espada

Não são todos que têm esse dinheiro para se mudar, ou que têm contatos em outra cidade para garantir moradia e emprego. Para a maioria, isso não é a realidade. Müge Ipek, barista em Istambul, já cogitou fugir do terremoto, mas tem receio de não conseguir se estabilizar fora da metrópole. "Se você está instável financeiramente, a primeira coisa que você pensa não é num terremoto", diz ela.
"Por esta razão, nós estamos dispostos a viver em Istambul apesar do terremoto. Se você deixar a cidade, ressoa a pergunta: 'que tipo de vida eu vou construir daqui para frente? Será que vou conseguir manter minha qualidade de vida?'", ela complementa.

A tensão cresceu desde que seu filho nasceu, o que levou ela e o marido a se mudarem para uma casa mais nova. Faz 5 anos. Ainda assim, o terremoto é um fantasma que permeia sua rotina: "Nós seguimos nossa vida sabendo que um dia terá um terremoto. Nossa casa é segura, mas no momento podemos estar no trabalho, meu filho na escola…". A sensação, segundo ela, é "'como se estivessem sentados numa bomba"': "Nós vivemos com a consciência de que podemos morrer com um terremoto a qualquer momento".

Os pobres na linha de frente

Para a maior parte da população de Istambul, está fora de cogitação mudar de casa, muito menos de cidade. Isso porque o terremoto, mais do que um desastre iminente, se tornou um grande agente do setor imobiliário. A segurança passou a ter preço em Istambul: morar em zonas com menos impacto e em prédios novos gerou uma grande demanda, e portanto custos astronômicos.

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Deniz Ertuncay, o sismólogo, explica que a absorção do 'fator terremoto' pelo mercado imobiliário reforçou a desigualdade: "Se você está em uma vizinhança rica, isso significa que os preços imobiliários são altos, então as empresas de construção podem renovar seus apartamentos sem pedir dinheiro". Isso porque, após reformado, o prédio se torna apto a receber andares adicionais. As empreiteiras então vendem os novos blocos e custeiam a reforma em zonas ricas.

Já o mesmo não acontece em vizinhanças pobres, pois os valores dos imóveis não compensariam o custo da reforma. Assim, donos de imóveis caros recebem reformas sem custo e as empreiteiras lucram em cima da zona especulativa, enquanto os bairros pobres têm que pagar a reforma do próprio bolso. "O que é impossível, porque eles não são ricos. Se fossem ricos, eles morariam em melhores condições", afirma Ertuncay.

Resignação frente ao inevitável

Istambul
Istambul Imagem: Reprodução/Lucas Tôrres

Entre os cerca de 20 milhões de habitantes em Istambul, há os que conseguem se mudar, há os que passam noites em claro, há os que discutem isso na mesa de jantar e há os que se resignaram. Aguardando o inevitável, sabem que a cidade que a vida que levam agora passará. Depois do terremoto, a cidade não será a mesma. Ruínas, feridos, sirenes e recursos escassos são algumas das coisas que os istambulitas esperam para depois do evento.
Até que aconteça, Özge Kırış, dona de uma cafeteria, vive desta forma: de dia em dia. Ela sabe o que esperar, pois já viveu outros terremotos: "Tudo para. De súbito, não há mais eletricidade e ninguém sabe o que está acontecendo. As únicas informações são os nomes ou histórias dos conhecidos que morreram".

Ainda assim, decide ficar na cidade, comprometida em fazer do seu café um reduto de direitos LGBT+, dos animais e do meio-ambiente. Vende tortas veganas e uma variedade de chás - servidos nos tradicionais copos turcos -, em uma rua estreita da região histórica de Gálata. Vive assim, administrando seu café e aproveitando a normalidade de sua vida enquanto pode: "Não há como contornar. Por isso, não me estresso".

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