Topo

Brasileiro treina na Amazônia com franceses da Legião Estrangeira

Gerardo Lissardy

Enviado especial da BBC Mundo à Guiana Francesa

08/01/2016 09h10

É meia-noite na selva da Guiana Francesa e o brasileiro Júlio César começa a se lembrar do dia em que decidiu se alistar na Legião Estrangeira: "Toda a minha família se reuniu para me dizer: o que você vai fazer lá?". Afinal, esta tropa do Exército francês teve, durante muito tempo, a fama de reunir criminosos, assassinos, sádicos e afins.

Mas Júlio César, que nem sequer era militar, ignorou os questionamentos de seus parentes e seguiu com a ideia, inspirado por uma reportagem na TV sobre um legionário, quando morava no Rio. Onze anos mais tarde, aos 35 anos, ele relata as situações extremas que enfrentou na Legião Estrangeira.

Uma delas foi carregar um soldado nas costas enquanto afundava em um local com areia movediça. Ou quando foi enviado ao Afeganistão, onde se envolveu em um "intenso combate".

Há um ano e meio ele vive na Guiana Francesa, onde os legionários são submetidos a um dos treinamentos militares de sobrevivência na selva mais duros que existem. O treinamento inclui dias de imersão na floresta, sem nada para comer além dos animais e frutos locais. Diariamente, é preciso caminhar dezenas de quilômetros sob calor e umidade intensos ou nadar em rios com jacarés.

De cabeça raspada, boina verde e farda camuflada, Júlio César agora também é francês e sargento-chefe da Legião. Ele não sabe qual será sua próxima missão.

"Se meus superiores me mandarem para uma missão contra o Estado Islâmico, irei com certeza", diz ele, em referência ao grupo extremista contra o qual a França declarou guerra após os ataques de novembro em Paris que deixaram 130 mortos. "Tenho vontade de ir".

Leopardo

A primeira coisa que chama a atenção ao se entrar no escritório do coronal Jérôme Ransan, na localidade franco-guianense de Kouru, é um leopardo empalhado.

Sentado em sua poltrona, o oficial de 44 anos, que comanda o Terceiro Regimento Estrangeiro de Infantaria (3º REI), afirma que a Legião Estrangeira tem o mesmo objetivo desde que foi criada, em 1831: ser uma tropa de combate a serviço da França, integrada por voluntários de vários países.

Atualmente, há quase 150 nacionalidades entre seus 7.800 homens, e Ransan afirma que os serviços franceses de segurança verificam seus antecedentes criminais.

"Hoje, a Legião Estrangeira não aceita criminosos nem pessoas processadas por crimes ligados a drogas, assassinatos ou violações."

No entanto, os candidatos podem solicitar que sejam recrutados com uma identidade diferente quando se apresentam pela primeira vez.

Um folheto da Legião explica que isso "oferece uma segunda oportunidade a quem quer virar uma página e estiver em busca de um novo começo".

Quando conversam com a imprensa, os legionários podem revelar apenas seu primeiro nome, algo que, segundo os superiores, se deve às ameaças extremistas que a França enfrenta.

'Não sou mercenário'

A trajetória dos legionários reflete bem a evolução dos conflitos no mundo: receberam ex-combatentes das guerras civis da Rússia nos anos 1920 e da Espanha nos anos 1930, e vários alemães depois da Segunda Guerra Mundial.

Hoje, boa parte do contingente vem de países da ex-União Soviética, da Europa central e dos Bálcãs. Os latino-americanos são 9% da força e vêm de locais desde o norte do México até o sul do Chile.

"Não sou mercenário", diz o cabo-chefe Alex, um sérvio de 37 anos que, durante seus dez anos na Legião, combateu em conflitos como os da ex-Iugoslávia. "Não estou aqui para matar alguém, recebo meu salário no fim do mês", diz o legionário, em voz baixa, marchando com um fuzil durante uma patrulha noturna antes do lançamento de um satélite em Kourou.

Proteger o Centro Espacial Guianês é uma missão primordial da Legião neste departamento ultramarino da França. O contingente militar montado no começo do mês para o transporte de um satélite europeu mobilizou centenas de legionários.

Estão ali também um russo, que prefere não dizer seu nome, e o chinês Zhihao, que tem 33 anos e carrega um fuzil de quase quatro quilos em marchas de 40 quilômetros. "Você se acostuma", diz ele em francês com um sotaque próprio.

A transformação dos legionários para atuar na floresta ocorre no acampamento Szutz, um centro de treinamento na Guiana Francesa que também treina unidades de outros países.

"A selva é o lugar mais difícil que existe", diz Adrián, legionário espanhol de 21 anos. "Te falam que não tem comida nem água. Há uma pressão psicológica: desmoraliza os soldados, mas para fazê-los mais fortes."

Conta que entre os animais que comem está a cutia, roedor comum na região. "Você espeta o animal, põe no fogo e...é uma delícia."

Hélmer, um português de 25 anos, recorda o dia em que passava "muita fome" e cruzou com uma serpente no caminho. "A serpente queria me atacar, mas eu queria comê-la. Comecei a correr atrás dela e ela fugiu. De todos os bichos que encontramos na selva, o mais gostoso, pra mim, é o jacaré."

Os legionários também citam uma longa lista de perigos na floresta: de escorpiões a macacos grandes, que jogam galhos do alto das árvores, além de insetos que transmitem malária e outras doenças perigosas.

Da Argélia à Indochina

A Legião Estrangeira participou de combates em vários lugares do mundo, do seu batismo de fogo na Argélia até o México do século 19, passando pela Indochina e Djibouti no século 20.

Passou de missões de defesa em antigas colônias francesas a intervenções em conflitos atuais, seja em países enfrentando crises humanitárias ou apoiando governos aliados de Paris.

O cabo-chefe mexicano Edgar, de 41 anos, já foi enviado ao Afeganistão, Chade e Kosovo. Ele conta que agora chegam muitos recrutas sem experiência militar. "Eles são necessários porque a diversidade é o que faz a força da Legião. Muitos vêm animados com os supersalários, mas quebram uma perna ou outra e não duram muito."

O salário é realmente um dos principais motivos para o alistamento.

Kristian, um legionário venezuelano, conta que seu salário base é de 1.600 euros, mas quando está em campo ganha 30 euros extras por dia. "No final, se pode ganhar 2.400 euros por mês", diz.

Além disso, após cinco anos, é possível pedir a naturalização francesa ou, após 17 anos e meio, receber uma pensão.

Mas outros contam que entraram na Legião Estrangeira em busca de aventuras, como o cabo Juan, chileno de 31 anos que trabalhava em plataformas de petróleo na Patagônia e que queria "mudar o ritmo de vida".

"Aprendi o que é o rigor da vida militar", comenta após cinco anos de serviço e missões no Mali, Costa do Marfim e Djibouti. "Te levam ao limite".

Na Guiana Francesa, onde o Terceiro Regimento Estrangeiro de Infantaria (3º REI) está desde 1973 e 50 homens perderam suas vidas, os legionários também participam de operações na selva contra a exploração clandestina de ouro, atividade bastante comum na região.

O peruano Julio se lembra de quando, treinando para missões deste tipo, foi deixado, juntamente com outros nove legionários e quatro policiais franceses, por um helicóptero no meio da selva para que aprendessem a retornar à base. A vegetação era tão impenetrável que resolveram se lançar, de mochila e tudo, a um rio repleto de jacarés. Flutuaram por três dias na corrente, até conseguirem voltar para a base.

Aos 34 anos, com uma medalha pelos serviços no Afeganistão e cidadania francesa, Julio conta que passou de jardineiro, em sua vida civil, a sargento. Ele nega com veemência que a Legião seja algo abominável, como muitos dizem.

"Muita gente tem a imagem de que só há loucos aqui. Encontrei alguns loucos, sim. Mas não todos."