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Como é a vida em um acampamento das Farc?

Guerrilheiros das Farc em acampamento da guerrilha colombiana - BBC Mundo
Guerrilheiros das Farc em acampamento da guerrilha colombiana Imagem: BBC Mundo

23/06/2016 18h52

O governo da Colômbia e os rebeldes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) assinaram nesta quinta-feira (23) um acordo histórico de cessar-fogo bilateral e definitivo, naquele que é o passo mais concreto para encerrar um conflito que já dura mais de meio século.

Após três anos de negociações, o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, e o líder das Farc, Timoleón Jiménez, conhecido como Timochenko, se reuniram em Havana (Cuba) para oficializar o tratado sobre o fim do conflito armado interno mais antigo da América Latina.

Durante mais de 50 anos, a guerra colombiana deixou mais de 200 mil mortos e forçou 6,9 milhões de pessoas a deixarem suas casas por causa da violência.

O acordo é formado por quatro pontos principais:

  1. Desarmamento das Farc;
  2. Cessar-fogo (e das hostilidades) bilateral e definitivo;
  3. Garantias de segurança e luta contra organizações criminosas responsáveis por homicídios e massacres ou que ameaçam defensores dos direitos humanos e movimentos sociais e políticos;
  4. Combate a condutas criminais que ameacem a construção da paz.

Ainda que se trate de um passo importante, o cessar-fogo definitivo só entrará em vigor quando for assinado o acordo final de paz. No texto assinado nesta quinta-feira, foi estabelecido um prazo de 180 dias para que as Farc abandonem as armas.

O processo de desarmamento será monitorado por uma missão de observadores de paz da ONU e da Comunidade de Estados da América Latina e Caribe (Celac).

Adeus aos acampamentos?

O tratado também prevê a criação de 22 zonas de transição ao longo do território colombiano. Nelas se concentrarão os membros das Farc enquanto durar o processo de reincorporá-los à vida civil.

Diante desse cenário histórico e dessa mudança no horizonte, o correspondente da BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) Natalio Cosoy foi até as selvas do oeste da Colômbia, onde conheceu um dos acampamentos dos rebeldes. Leia abaixo o relato de sua visita:

"O rio Naya, que divide as regiões de Cauca e Valle del Cauca, no oeste da Colômbia, é como uma grande avenida na região, onde quase não há estradas. Como qualquer grande avenida, apresenta oportunidades de propaganda. E as Farc, sabendo disso, colocaram dezenas de cartazes com mensagens como 'Farc-EP, 52 anos em busca da paz', com fotos de seus líderes.

A lancha nos leva para perto de um pequeno riacho. Um grupo de guerrilheiros e guerrilheiras muito jovens nos recebe em silêncio e começa a carregar nossa bagagem. São tímidos, e cada um leva um fuzil no ombro. Uma das jovens sorri e mostra dentes muito bem cuidados. E ela não é a única do grupo que recebe tratamento odontológico ali.

Depois de uma caminhada pela selva, em meio à muita umidade, chegamos ao acampamento. É uma pequena vila de madeira, escondida debaixo da copa das árvores e perto de uma fonte de água, a primeira condição para a guerrilha escolher um lugar onde armar suas bases. Grandes mangueiras negras alimentam um tanque de 2 m x 2 m que serve para cozinhar, lavar pratos e roupas, limpar as botas do barro e tomar banho de balde.

Aqui vivem 18 guerrilheiros, 11 homens e sete mulheres. Em três semanas, eles construíram o lugar, levantaram meia dúzia de espaços para dormir, com piso, teto e parede, colocaram camas com colchonetes e mosquiteiros para casais. Cada um divide a cama com uma pessoa indicada pelo comandante, pois as decisões sempre vêm de cima. Os casais podem dormir juntos. Mas precisam ser de homem e mulher.

A guerrilha foi acusada de ser uma organização homofóbica. Apesar de não proibir homossexuais entre seus guerrilheiros, as Farc costumam retirá-los dos acampamentos, recolher suas armas e manda-os para o trabalho como milicianos, segundo informações passadas por três comandantes.

Além dos espaços para dormir e para lavar roupas, louças e banho, o acampamento tem um banheiro e um pátio de cerca de 10 m x 3 m, feito com tábuas de madeira, uma sala de reuniões ou de aula --maior do que o pátio, equipada com cadeiras e uma mesa de jardim, tudo de plástico azul-- e um armazém de alimentos e produtos de limpeza. Todas as estruturas estão unidas por corredores de madeira para que os pés não fiquem sujos de barro.

O acampamento tem energia elétrica fornecida por um gerador e os dormitórios têm tomadas. A sala tem uma televisão de tela plana com 32 polegadas. Há também uma geladeira branca, pequena.

Vários guerrilheiros estão em volta da TV assistindo a um filme mexicano antigo. Em outro momento, eles viam um filme de ação americano.

Neste acampamento, o grupo tem sua rotina de comer, dormir, assistir televisão ou então à chuva de toda tarde. Também fazem cursos para se preparar para a vida política após o conflito.

Engenheiro civil

Camilo é um dos guerrilheiros que está no local, mas não vive de forma permanente no acampamento. Tem 27 anos, mas parece mais jovem. Chegou apenas até o 5º ano do ensino fundamental, embora quisesse ser engenheiro civil. Ele conta que começou nas Farc aos 13 anos e gerenciava um grupo com cinco milicianos. Não é o único de sua família de oito irmãos que se envolveu com a guerrilha. O irmão caçula, porém, foi para o Exército.

Camilo pegou em armas aos 17 anos e, aos 24, já era comandante de guerrilha, liderando 24 homens. No entanto, sua vida é orientada pelas relações superior-subordinado ou guerrilheiro-guerrilheiro, seguindo sempre os moldes das Farc.

Com o cessar-fogo, é possível que Camilo e muitos outros tenham que aprender a manter relações diferentes. Os guerrilheiros contam que nas Farc não há amigos, existem companheiros, camaradas. "Aqui não há direito a amigos. Somos companheiros, um amigo é algo muito íntimo", afirmou Camilo.

E os comandantes das Farc acreditam que a intimidade pode gerar uma lealdade comprometedora. E o próprio Camilo pergunta como tomar uma decisão difícil sobre alguém que se transformou em um amigo. Ele cita um exemplo mais dramático: como votar caso tenha que executar um guerrilheiro que desrespeitou as regras da insurgência. Camilo mesmo teve que fazer isso mais de uma vez, quando companheiros foram condenados à morte por roubo de dinheiro, por exemplo.

Durante a conversa, ele me disse: 'Eu me dedicava aos explosivos, não a prepará-los, mas a ativá-los.'

Assim, do nada, com apenas essa frase, lembrei que o sujeito simpático e amável sempre bem disposto era parte de uma guerra violentíssima. Um participante muito ativo. Ele deixou essas suas funções desde o cessar-fogo unilateral de julho de 2015."