Amanda Cotrim

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Reportagem

Brasileiros na Argentina usam poupança e cortam mercado para pagar contas

Viver na Argentina não está mais atraente do ponto de vista econômico para brasileiros. O país, que tem 90 mil brasileiros residentes, segundo o Itamaraty, está cada vez mais caro tanto para quem ganha em real quanto para quem recebe em peso argentino.

Para se ter uma ideia, em dezembro de 2023, R$ 1 comprava 280 pesos na cotação paralela, de acordo com as casas de câmbios e financeiras autorizadas, como Western Union. É no mercado paralelo, o famoso câmbio blue, que brasileiros costumam trocar a moeda.

Foi a última vez que a moeda brasileira esteve forte em terras hermanas. Em setembro deste ano, R$ 1 comprava só 215 pesos —queda de 23,2%.

No câmbio oficial, muito menos usado, R$ 1 comprava 165 pesos em dezembro e hoje compra 176 pesos, o que faz o câmbio blue ainda valer a pena.

Custo de vida triplicado

A professora de espanhol Raquel de Carvalho conta que, em 2024, seu custo de vida triplicou. Ela mora em Buenos Aires há oito anos e dá aulas remotamente para clientes brasileiros, recebendo em real.

"Nunca vi algo tão surreal como agora, nem na pandemia. Tudo aumentou muito e de uma vez, sem muito cuidado com a população. Ajustes de 300%. Quem ganhava em real tinha um alívio, mas agora a moeda brasileira não está acompanhando o aumento astronômico dos preços na Argentina. O real estagnou. Esse ano está sendo muito desafiador", disse.

'Recorri à reserva de emergência no Brasil'

Mateus Oliveira Cristóvão, 41, trabalha há dois anos como gerente de treinamento em uma multinacional, em Buenos Aires.

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Receber em peso argentino nunca havia sido um problema para o brasileiro, porque os salários formais na Argentina acompanhavam a inflação. Além disso, o Estado fornecia subsídios e controlava os preços.

Porém, esse cenário mudou desde que o governo Javier Milei assumiu, no final de 2023. O custo de vida do brasileiro quadruplicou, e ele precisou, pela primeira vez, retirar dinheiro da reserva financeira que mantém no Brasil.

"Precisei mudar de apartamento por causa dos constantes aumentos e da dolarização dos aluguéis. Pela primeira vez, recorri à minha reserva de emergência no Brasil", disse Cristóvão, que conta ter diminuído as compras no supermercado. "Antes fazia compra mensal, hoje em dia, a compra é semanal e foi reduzida ao essencial", disse.

Amante declarado de Buenos Aires, o brasileiro afirma que, se não fosse a instabilidade econômica, a capital argentina seria seu lar "para sempre". " Tenho mais qualidade de vida aqui do que tinha em São Paulo. Mas, infelizmente, com a economia como está este ano, penso em ir embora antes do que imaginava", disse.

Política cambial encareceu Argentina

As explicações para a queda do real no câmbio blue envolvem uma série de fatores.

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Uma delas é a variação do peso em relação ao dólar. O governo Milei criou uma trava: o peso passou a se desvalorizar 2% ao mês em relação à moeda norte-americana. A medida, criada para conter a inflação, na prática, impede o câmbio de flutuar livremente, conforme o economista argentino Tomás Canosa, do centro de investigação de políticas públicas Fundar.

Para efeito de comparação, sob essa política, a cotação oficial do peso se fortaleceu 45% em relação à do dólar paralelo, entre dezembro de 2023 e setembro de 2024, disse Tomás Tagle, economista sênior da Empírica Consultores. Para ele, o peso ainda pode ser valorizar mais 5% até o final do ano.

Dólar paralelo segue subindo

O problema é que o dólar oficial não é utilizado no dia a dia na Argentina —o câmbio blue é que influencia no preço de produtos e serviços. E o dólar paralelo segue subindo.

Quando Milei assumiu, em dezembro, o dólar paralelo estava cotado em 850 pesos, aproximadamente. Em julho, a cotação paralela chegou a bater o recorde histórico de 1.500. Depois caiu um pouco, e estava em cerca de 1.280 na segunda semana de setembro.

Apesar disso, o governo celebra que o câmbio blue do dólar está mais "controlado" e que a inflação está desacelerando.

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Em agosto, a alta de preços foi de 4,2%, muito abaixo dos 12,4% registrados no mesmo mês de 2023. No entanto, a inflação segue alta em 12 meses (236%) e no acumulado de 2024 (87%).

Custo social e dúvidas

Para a brasileira Monica de Bolle, professora da Georgetown University e membro sênior no Peterson Institute for International Economics, a política cambial do governo argentino está bagunçando o mercado. "A valorização do peso é resultado de muita distorção", disse.

Os reflexos são sentidos na perda do poder aquisitivo, o que anula os efeitos da desaceleração da inflação.

"O fato de a inflação estar desacelerando é uma boa notícia, mas a economia não está crescendo. Portanto, para saber se a vida das pessoas está melhor ou pior, isso depende da inflação, e, principalmente do poder de compra, do emprego e dos rendimentos, com aumento salarial acima da inflação", destacou Canosa.

O salário mínimo, por exemplo, havia perdido 15% do poder de compra em maio (último dado disponível), em relação a dezembro, quando Milei assumiu. O mínimo argentino hoje está em cerca de 270 mil pesos (R$ 1.200, aproximadamente).

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A pobreza, que atingia 44,7% da população em 2023, subiu para 52% no primeiro semestre deste ano, de acordo com um estudo da Universidade Católica da Argentina (UCA).

Os dados do instituto oficial de estatísticas confirmam essa tendência. De acordo com o Indec, a pobreza na Argentina atingiu 52,9% no primeiro trimestre de 2024, afetando 15,7 milhões de pessoas. Um ano antes, o índice de pobreza era de 38,7%.O desemprego também subiu, passando de 6,2% em dezembro para 7,7% no primeiro semestre deste ano.

O PIB (Produto Interno Bruto) argentino caiu 5,1% no primeiro trimestre de 2024, em relação ao mesmo período do ano passado, segundo o instituto de estatísticas do país.

Como resultado, o custo de vida na Argentina é o maior da América Latina e superior ao de alguns países da Europa, como Alemanha, França, Espanha e Portugal, de acordo com um estudo da Universidade de Buenos Aires que compara o poder de compra do salário mínimo.

Na Argentina, diz o estudo, o salário mínimo não compra nem uma cesta básica.

Peso também se valorizou em relação ao real

Para brasileiros que recebem em real, há outro fator importante. O peso oficial também se valorizou em relação a outras moedas, incluindo o real.

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"O novo governo realizou um forte ajuste fiscal. Isso, somado ao controle sobre o dólar, fortaleceu a moeda nacional", disse Tagle.

Bolle explica que o dólar é a moeda de referência. Então se o peso se valoriza em relação ao dólar, esse movimento também se reflete no câmbio entre o peso e o real.

"Como o peso está menos desvalorizado frente ao dólar, mas o real está mais desvalorizado frente ao dólar, isso significa que o real estará mais desvalorizado frente ao peso", diz.

Ela também critica a "manipulação" do câmbio pelo governo, ainda que não seja possível especular como estaria o real frente ao peso se o câmbio estivesse flutuando livremente.

"A flutuação do câmbio a curto prazo quase nunca é determinada por macroeconomia, mas o fato de a Argentina manter uma política cambial artificial gera esse desalinhamento", afirma.

Para decidir se vale a pena se mudar para a Argentina gastando em peso, mas ganhando em real, Tagle diz que é preciso olhar o longo prazo.

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"É provável que a Argentina passe a ser mais cara, em consonância com o potencial produtivo que tem. Isso dependerá do êxito do plano econômico atual e da paciência da sociedade argentina em esperar resultados", disse.

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