Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Vidas negras importam: 14 de março une Marielle, Carolina de Jesus e Abdias
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A lembrança da morte é a afirmação da importância da vida.
Na língua bantu, uma das muitas contribuições linguísticas e culturais africanas para o Brasil, o termo bakulo é utilizado para os ancestrais, os bem lembrados, aqueles que nos deixam boas memórias. Aqueles cujas mortes não interromperam seus legados.
Em meio às mais de 273 mil mortes por covid-19, é nosso dever como civilização condenar a banalização dessas perdas perpetrada pelo presidente da República.
O dia 14 de março é uma data para recordar que vidas negras importam. E mortes de pessoas negras importam também.
Em 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram brutalmente assassinados no Rio. As respostas sobre esse crime político se mantêm como um dívida do Estado brasileiro com as famílias e com todos que lutam por justiça.
Nesses três anos, a morte de Marielle não foi esquecida em único momento pelos movimentos sociais, em especial, pelo movimento negro brasileiro, que historicamente denuncia o genocídio da população negra em curso no país.
A vida de Marielle também não será esquecida. Tornou-se inspiração para mulheres e homens que não aceitam mais a violência institucionalizada pelo racismo contra os corpos negros. Das vozes de indignação que não querem mais ser caladas.
As eleições municipais de 2020 mostraram a força motivadora da vida e morte de Marielle Franco com o fortalecimento do movimento de mulheres negras na política a partir de seu legado.
Bakulos que nasceram em 14 de março
Em 14 de março de 1914 nasceram duas vidas negras que, de tão potentes, o racismo não conseguiu apagar. Carolina Maria de Jesus e Abdias do Nascimento nasceram no mesmo ano e cumpriram uma caminhada de resistência, traçadas com arte, coragem e revolta
Demorou muito para que as contundentes denúncias da obra Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada fossem conhecidas pelo público brasileiro e pelos leitores dos mais de 40 países por onde circularam as edições traduzidas deste best seller de Carolina Jesus, descoberto e lançado somente na década de 1960.
Livros como Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963), Provérbios (1963) e Diário de Bitita (1982) revelam o talento em narrar —em prosas, poesias e canções— as memórias de uma empregada doméstica e catadora de papel em prosas, poesias e canções.
"A escritora que nasce do improvável", como define a doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia, Cristian Salles. "Catando papel, ela reinventa a própria vida. Passa a ler livros e a construir suas memórias, que não são individuais. É uma memória coletiva, de uma intérprete tão sensível do Brasil pós-escravista."
A morte da escritora, em 1977, não interrompeu seu legado. A vida e a escrita de Carolina é fonte de inspiração para gerações de escritoras negras.
Reconhecimento com o título honoris causa
Em 25 de fevereiro, a escritora recebeu homenagem póstuma da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que concedeu a Carolina Maria de Jesus o título de doutora honoris causa, honraria atribuída a quem se reconhece os méritos e contribuições para a sociedade.
Abdias Nascimento também recebeu o título de doutor honoris causa de quatro universidades brasileiras, além da Universidade Obafemi Awolowo em Ilé-Ifé, na Nigéria.
Esses reconhecimentos são formas de não esquecer de uma história que se inicia na década de 1930, na Frente Negra Brasileira e se potencializa na criação do Teatro do Sentenciado na Penitenciária do Carandiru, em 1943; do Teatro Experimental do Negro, em 1944, pioneiro do protagonismo negro nas artes cênicas, e do jornal O Quilombo, de 1948.
Faleceu aos 97 anos, em maio de 2011, tendo dedicado a maior parte da vida para exaltar a cultura negra e denunciar o racismo, no Brasil e no mundo, e inspirar pessoas a colocarem seus talentos em favor das lutas coletivas
Em retrospectivas produzidas pela imprensa em 2011, a ausência do nome do ex-senador da República Abdias Nascimento foi notada no obituário de veículos importantes. Ignoraram sua morte tanto quanto sua vida. Deixaram de conhecer e divulgar o pensamento e as contribuições deste multi-artista, intelectual e ativista.
Quiseram as forças ancestrais que os três bakulos (Marielle Franco, Carolina Maria de Jesus e Abdias do Nascimento) tivessem suas vidas (e morte) cruzadas neste 14 de março para nos mobilizar contra o genocídio e lutarmos pela vida.
Enquanto essas vidas forem lembradas, seus legados não serão interrompidos.
Marielle, Presente!
Carolina Maria de Jesus, Presente!
Abdias Nascimento, Presente!
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