Topo

André Santana

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Vidas negras importam: 14 de março une Marielle, Carolina de Jesus e Abdias

Marielle Franco - Reprodução
Marielle Franco Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

14/03/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A lembrança da morte é a afirmação da importância da vida.

Na língua bantu, uma das muitas contribuições linguísticas e culturais africanas para o Brasil, o termo bakulo é utilizado para os ancestrais, os bem lembrados, aqueles que nos deixam boas memórias. Aqueles cujas mortes não interromperam seus legados.

Em meio às mais de 273 mil mortes por covid-19, é nosso dever como civilização condenar a banalização dessas perdas perpetrada pelo presidente da República.

O dia 14 de março é uma data para recordar que vidas negras importam. E mortes de pessoas negras importam também.

Em 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes foram brutalmente assassinados no Rio. As respostas sobre esse crime político se mantêm como um dívida do Estado brasileiro com as famílias e com todos que lutam por justiça.

14.jun.2020 - "Vidas Negras Importam", diz faixa levada a protesto na avenida Paulista contra o racismo e o governo Bolsonaro - Marcello Zambrana/Agif - Agência de Fotografia/Estadão Conteúdo - Marcello Zambrana/Agif - Agência de Fotografia/Estadão Conteúdo
14.jun.2020 - "Vidas Negras Importam", diz faixa levada a protesto na avenida Paulista contra o racismo e o governo Bolsonaro
Imagem: Marcello Zambrana/Agif - Agência de Fotografia/Estadão Conteúdo

Nesses três anos, a morte de Marielle não foi esquecida em único momento pelos movimentos sociais, em especial, pelo movimento negro brasileiro, que historicamente denuncia o genocídio da população negra em curso no país.

A vida de Marielle também não será esquecida. Tornou-se inspiração para mulheres e homens que não aceitam mais a violência institucionalizada pelo racismo contra os corpos negros. Das vozes de indignação que não querem mais ser caladas.

As eleições municipais de 2020 mostraram a força motivadora da vida e morte de Marielle Franco com o fortalecimento do movimento de mulheres negras na política a partir de seu legado.

Bakulos que nasceram em 14 de março

Em 14 de março de 1914 nasceram duas vidas negras que, de tão potentes, o racismo não conseguiu apagar. Carolina Maria de Jesus e Abdias do Nascimento nasceram no mesmo ano e cumpriram uma caminhada de resistência, traçadas com arte, coragem e revolta

Demorou muito para que as contundentes denúncias da obra Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada fossem conhecidas pelo público brasileiro e pelos leitores dos mais de 40 países por onde circularam as edições traduzidas deste best seller de Carolina Jesus, descoberto e lançado somente na década de 1960.

Literatura: a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo". (São Paulo (SP), 17.06.1960.  - Acervo UH/Folhapress - Acervo UH/Folhapress
Literatura: a escritora brasileira Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo". (São Paulo (SP), 17.06.1960.
Imagem: Acervo UH/Folhapress

Livros como Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963), Provérbios (1963) e Diário de Bitita (1982) revelam o talento em narrar —em prosas, poesias e canções— as memórias de uma empregada doméstica e catadora de papel em prosas, poesias e canções.

"A escritora que nasce do improvável", como define a doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia, Cristian Salles. "Catando papel, ela reinventa a própria vida. Passa a ler livros e a construir suas memórias, que não são individuais. É uma memória coletiva, de uma intérprete tão sensível do Brasil pós-escravista."

A morte da escritora, em 1977, não interrompeu seu legado. A vida e a escrita de Carolina é fonte de inspiração para gerações de escritoras negras.

Reconhecimento com o título honoris causa

Em 25 de fevereiro, a escritora recebeu homenagem póstuma da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que concedeu a Carolina Maria de Jesus o título de doutora honoris causa, honraria atribuída a quem se reconhece os méritos e contribuições para a sociedade.

Abdias Nascimento também recebeu o título de doutor honoris causa de quatro universidades brasileiras, além da Universidade Obafemi Awolowo em Ilé-Ifé, na Nigéria.

Abdias Nascimento - Folhapress - Folhapress
"Por todos os meios necessários": a frase de Malcolm X pode sintetizar a vida e ativismo de Abdias Nascimento (foto)
Imagem: Folhapress

Esses reconhecimentos são formas de não esquecer de uma história que se inicia na década de 1930, na Frente Negra Brasileira e se potencializa na criação do Teatro do Sentenciado na Penitenciária do Carandiru, em 1943; do Teatro Experimental do Negro, em 1944, pioneiro do protagonismo negro nas artes cênicas, e do jornal O Quilombo, de 1948.

Ator, escritor, diretor, dramaturgo, pintor, poeta, político, Abdias foi o militante do movimento negro de trajetória mais longeva no país.

Faleceu aos 97 anos, em maio de 2011, tendo dedicado a maior parte da vida para exaltar a cultura negra e denunciar o racismo, no Brasil e no mundo, e inspirar pessoas a colocarem seus talentos em favor das lutas coletivas

Em retrospectivas produzidas pela imprensa em 2011, a ausência do nome do ex-senador da República Abdias Nascimento foi notada no obituário de veículos importantes. Ignoraram sua morte tanto quanto sua vida. Deixaram de conhecer e divulgar o pensamento e as contribuições deste multi-artista, intelectual e ativista.

Quiseram as forças ancestrais que os três bakulos (Marielle Franco, Carolina Maria de Jesus e Abdias do Nascimento) tivessem suas vidas (e morte) cruzadas neste 14 de março para nos mobilizar contra o genocídio e lutarmos pela vida.

Enquanto essas vidas forem lembradas, seus legados não serão interrompidos.

Marielle, Presente!

Carolina Maria de Jesus, Presente!

Abdias Nascimento, Presente!