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"Óbito também é alta, reduz oxigênio": advogada revela Auschwitz brasileira

A advogada Bruna Morato, que representa médicos da Prevent Senior, durante depoimento à CPI da Covid - Roque de Sá/Agência Senado
A advogada Bruna Morato, que representa médicos da Prevent Senior, durante depoimento à CPI da Covid Imagem: Roque de Sá/Agência Senado

Colunista do UOL

28/09/2021 21h33Atualizada em 29/09/2021 18h50

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"Se a economia afundar, acaba o governo, tem disputa de poder nisso" (Presidente Jair Bolsonaro, ainda no começo da pandemia).

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Ao final do dilacerante depoimento à CPI da Pandemia dado nesta terça-feira pela advogada Bruna Morato, que representa médicos demitidos da Prevent Senior, por se recusarem a ministrar o "kit Covid", eu me lembrei das histórias que ouvia dos meus pais na infância, sobre os horrores dos campos de concentração dos nazistas na Segunda Guerra.

Em Auschwitz, território que hoje pertence à Polônia, mas era então ocupado pela Alemanha, o carrasco Mengele reduzia os judeus presos a cobaias humanas e se comprazia com isso, como se viu nos filmes, antes de mandá-los para os fornos nas câmaras de gás.

"Eu vi minha mãe saindo pela chaminé no dia 6 de outubro de 1944. É uma porcaria ter que lembrar isso, mas eu lembro de tudo...", me contou Andor Stern, que passou 13 meses no inferno de Auschwitz, sobreviveu ao Holocausto e tinha 91 anos em 10 de novembro de 2019, quando o entrevistei para a Folha. A reportagem pode ser encontrada no arquivo eletrônico do jornal ou no Google.

De passos firmes, baixinho e franzino, um pouco curvado pela idade, veio ele mesmo abrir o portão da sua casa no Brooklin, na zona sul de São Paulo, e desandou a falar daqueles horrores da guerra, eu nem precisava fazer perguntas. De vez em quando, me filava um cigarro, escondido da mulher.

Na época, ele ainda dirigia o próprio carro e, dono de uma memória fantástica, fazia questão de me contar a tragédia vivida nos mínimos detalhes, como se tudo aquilo tivesse acontecido ontem, com outra pessoa, não com ele.

E por que me lembrei dessa história?

Porque muitos pacientes da Prevent Senior e de outros hospitais brasileiros, que adotaram o "kit Covid" de remédios ineficazes e perigosos para a saúde, receitados pelo "gabinete paralelo" do governo Bolsonaro, não tiveram o mesmo destino milagroso de Andor Stern, uma figuraça.

Morreram sem precisar, com requintes de crueldade.

A passagem mais escabrosa do longo relato de Bruna Morato foi quando ela contou o que ouviu de um médico da rede. Era indicada a redução do fornecimento de oxigênio por respiradores a pacientes internados em determinadas UTIs por mais de 10 dias. "Esses pacientes evoluíam a óbito dentro da própria UTI e se tinha uma liberação de leitos". Foi a forma encontrada para economizar custos.

"Óbito também é alta", ouviam os médicos muitas vezes, segundo Morato.

Nada aconteceu por acaso. Como os clientes da Prevent Senior eram idosos com média de idade de 68 anos, as principais vitimas no início da pandemia, em março do ano passado, era preciso evitar as internações e liberar leitos de UTI à medida em que a doença avançava.

Ao mesmo tempo, no Palácio do Planalto, para a economia não afundar e o governo não acabar, o presidente montou um grupo de cientistas malucos dispostos a qualquer coisa para defender a imunidade de rebanho e combater as medidas de isolamento social.

A ordem era para ninguém ficar em casa e todo mundo sair à rua para trabalhar. Vendo sua margem de lucro diminuir e sem leitos suficientes para atender à demanda crescente, os donos da Prevent Senior mandavam motoboys entregar cloroquina e outras fórmulas milagrosas na casa dos clientes, sem antes fazer qualquer teste ou exame nos pacientes.

Segundo Morato, criou-se um "pacto" entre a operadora e os sábios conselheiros do presidente, à revelia no então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que foi demitido, trocado mais à frente pelo general Eduardo Pazuello, aquele mesmo do "um manda e outro obedece", após breve passagem do médico Nelson Teich.

O objetivo era usar o chamado tratamento precoce com o "kit Covid" para dar uma esperança de cura à população e evitar o fechamento da economia.

Mas, o que mais espantou os senadores, foi outra revelação feita pela advogada, quando ela disse que o tal "gabinete paralelo" atuava em parceria com o Ministério da Economia, que só queria ver o povo trabalhando, sem essa história de lockdown dos governadores, que na verdade nunca aconteceu.

"Este foi o mais impactante depoimento que já vimos até agora nesta CPI. Mostra uma cena macabra", disse o vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues, ao encerrar a sessão.

De fato, a valente advogada Bruna Morato _ sempre elas! _ , que já teve seu escritório invadido e está sofrendo ameaças, ligou as pontas soltas das relações promíscuas deste plano de saúde com a política negacionista do governo, a omissão os conselhos de medicina e dos órgãos oficiais de fiscalização e controle.

Só assim conseguimos chegar à marca de quase 600 mil mortos e mais de 21 milhões de contaminados, com a economia em frangalhos, e um povo que perdeu a esperança de que algo possa mudar, enquanto tivermos esse governo e a medicina privada dos planos de saúde fora de qualquer controle.

Por isso, vieram-me à memória as piores lembranças. Nós não estávamos em guerra, não tivemos câmaras de gás, mas demoramos a descobrir as grandes maracutaias público-privadas reveladas pela CPI na maior tragédia da nossa história recente.

Ninguém é inocente nessa história escabrosa, mas os principais responsáveis pelo nosso Holocausto precisam ser exemplarmente processados e punidos para que o país possa voltar a acreditar em si mesmo.

Não, a CPI não acabou em pizza. E os seus efeitos estão só começando.

Sem a gente perceber, Auschwitz ressurgiu aqui, com o corte de oxigênio dos respiradores, sob o lema de que "óbito também é alta", e distribuindo toneladas de cloroquina, que não cura, mas pode matar. .

Quem diz e faz uma coisa dessas, não pode mais viver entre nós.

Vida que segue.

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