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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta aberta a Alípio Viana Freire

Alípio Freire participa de audiência pública da Comissão da Verdade Rubens Paiva, em 2013 - José Antonio Teixeira/ALESP
Alípio Freire participa de audiência pública da Comissão da Verdade Rubens Paiva, em 2013 Imagem: José Antonio Teixeira/ALESP

03/05/2021 17h52

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Por Paulo Vannuchi

Desculpe a demora, Alípio, mas somente hoje consigo responder à sua corajosa carta de 30 de dezembro de 2009.

As décadas nunca são perdidas, mas nosso país atravessa hoje um retrocesso brutal. Fico pensando se essa dor histórica e psíquica contribuiu para nos roubar lutadores como você, Sigmaringa, Marco Aurélio, Marisa Letícia, Colombo, Audálio, Martinelli, Haroldo Lima, Eliane Mantega, Antonio Lancetti, Vidal, Egídio, Milton Simonetti, Roberto Caporal, Joaquin Piñera/Kima e Mirian Farias. Seja pelo vírus terrível ou não.

Não tenho ideia de onde você se encontra agora, Alípio. Talvez em alguma Aruanda materialista, que brotou da boa mescla entre o seu marxismo indeclinável e a sagrada benção dos orixás que injetaram em você a telúrica e africana energia da Bahia.

Sua carta aberta, na verdade, era dirigida ao Brasil. Com o título "O Outro Lado", faz uma dura, mas atualíssima análise sobre o poder militar. Que voltou a usurpar nossa nação. Desta vez dispensando os tanques, mas ainda cavalgando a mentira.

Você e Paulo Sérgio Pinheiro foram os primeiros a romper o silêncio ou a covardia que se abateram sobre outros. Foi lançado um violento ataque midiático - prenúncio da gigantesca orquestração que atingiria Dilma e Lula mais tarde - contra a terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH).

A imprensa brasileira - honrosas exceções sempre existem - se alinhou com a recusa do Ministério da Defesa aos termos definidos no decreto presidencial que instituiu o PNDH-3. Tratava-se, em resumo, de finalmente investigar as torturas, assassinatos, violações e desaparecimento de cadáveres que pautaram o pior momento da ditadura de 1964-1985.

Ao final, a Comissão Nacional da Verdade acabou saindo. Após 30 meses de investigações e tomada de depoimentos - inclusive do torturador Ustra, ícone de um demente que ainda mora no Palácio da Alvorada -, adotou como versão oficial de Estado a verdade que as vítimas, seus familiares, advogados, pesquisadores e jornalistas vinham tecendo desde o final dos anos 1960.

As 29 recomendações conclusivas da CNV teriam barrado - se concretizadas fossem - a chegada de uma liderança vil ao Planalto, poupando o Brasil de uma grande parcela das milhares de vidas humanas ceifadas na pandemia.

Sonhador como eu, Alípio, deve ter passado pela sua cabeça, nos difíceis momentos de UTI, que fosse Lula ou fosse Haddad o presidente em 2020, certamente o Brasil teria se alinhado com a ciência e comprado vacinas na hora certa. E você já estaria vacinado desde dezembro ou janeiro, escapando dessa.

Muita gente está conhecendo você melhor agora, Alípio. Uma enxurrada de poemas, fotos, vídeos, homenagens, recordações e vigílias inunda as redes sociais. Maria Auxiliadora Arantes, a Dodora, uma das maiores combatentes contra a tortura que nosso país já teve, transcreveu a denúncia oficial que você escreveu, em 2002, dirigida ao organismo paulista de reparação. O livro Tortura, editora Casa do Psicólogo, 2013, da coleção Clínica Psicanalítica, registra:

"Amarraram-me as mãos para trás com uma corda e, em seguida, os tornozelos; faziam-me perguntas e me cobriam de golpes de cassetetes, socos, tapas e pontapés - o rosto foi o alvo principal dos tapas; (...) os pontapés não escolhiam alvos. Queriam nomes e endereços de pessoas, e minha implicação com os moradores (já presos em sua maioria) daquela casa. Como me recusasse a prestar as informações, a violência prosseguia".

Você conta que foi levado ao Batalhão de Reconhecimento Mecanizado do II Exército, onde funcionava a recém-criada Operação Bandeirante (Oban). Não economiza nos detalhes: "...despido, fui alçado no pau de arara. Pendurado, amarraram-me um fio descascado no artelho maior esquerdo e, com o outro polo, iam percorrendo várias partes do meu corpo: ouvidos, boca, língua, narinas, cantos dos olhos, mamilos, todo o tórax (com uma atenção especial para a região onde se localiza o coração), pernas, braços, umbigo, pênis, testículos e ânus. A corrente elétrica era puxada de uma tomada (naquele dia, 110 volts). Concomitantemente, além de murros, tapas e "telefones", era surrado com bastões e com uma tira de lona dobrada e molhada. Vez por outra, derramavam água ou algum refrigerante sobre todo o meu corpo, com o objetivo de potencializar os efeitos dos choques, aumentando a condutibilidade da corrente. Nessas ocasiões, fizeram várias vezes escorrer para dentro das minhas narinas o líquido (ora água, ora refrigerante) com que me molhavam o corpo, provocando fortes afogamentos. Em determinado momento - uma vez que não obtinham informações - disseram que iam buscar minha mãe para torturar".

Celso Frateschi, ator, diretor e militante, descreve essa noite: "Estávamos com mais uns vinte companheiros jogados num cativeiro da Oban. Alípio foi barbaramente torturado por horas. Durante muito tempo fomos torturados por sua tortura. Foi na madrugada que ele chegou carregado, sem nenhum movimento no corpo. Me revoltou a deformação de seu belo rosto, muito machucado, pois seus cabelos e seus bigodes foram arrancados com alicate. O pau de arara tinha interrompido a circulação em seus membros e Alípio não conseguia se mexer.

Conseguimos encostá-lo em uma parede da cela. Ele mal conseguia esticar as pernas. Respirou fundo umas duas ou três vezes, abriu o seu largo sorriso e pronunciou, com um desejo verdadeiro e um pouco de deboche: Ah! Quem me dera arfar docemente nos braços argentinos de Angelita".

Só você mesmo, Alípio, para extravasar loucamente alguma poesia, num momento tão duro como aquele.

Vi seu rosto inconfundível pela primeira vez numa janela do Presídio Tiradentes, nos idos de 1970, quando visitava meu irmão José Ivo, igualmente preso e igualmente torturado. Do pátio, via na janela semblantes já conhecidos, como os de Antenor Meyer, Carlinhos Lichtsztejn, Espinosa, Augusto Boal, Luís Takaoka. E de outros como você, que só contatei diretamente em 1971, quando fui morar no mesmo endereço.

A parede de minha cela, no Pavilhão 2, se dividia com a famosa Torre onde estavam Dilma e Rita Sipahi, sua companheira, Alípio, de tanto amor e de tanta vida. Disputas e sectarismos que, agora de longe, só conseguimos explicar jogando a culpa em nossa ardorosa condição juvenil, nos afastaram em blocos políticos adversários no coletivo dos presos políticos. Mesmo assim, eu driblava as rígidas regras do meu agrupamento. Aproveitava o retorno do banho de sol para falar com você no guichê de sua cela individual. Seus desenhos, nossas lembranças de Antonio Benetazzo, amigo seu, ícone meu.

Nessa linha dos muitos tributos a você, aproveito para perguntar se gostou do retrato que meu filho, o jornalista Camilo Morano Vannuchi, escreveu no blog do UOL no dia de sua partida: "Escutar Alípio era sempre uma experiência inspiradora. Aos 70 anos, barbudo e grisalho, ele parecia um sábio, um profeta. E era. Jamais deixou de ser. Não era somente a aparência física que lhe conferia o aspecto de um mago, com seu porte esguio e os cabelos longos, a marcha cadenciada e tranquila, uma bengala que parecia um báculo, um cajado. Alípio falava num ritmo e num timbre que ajudavam a compor a efigie de guru: um xeque do Irã, um druida, um ancião".

O Brasil de Fato e a Editora Expressão Popular contam do trabalho fundador que você desempenhou nesses instrumentos de formação e informação dos trabalhadores, bem como do seu apoio entusiasta à Escola de Formação Florestan Fernandes, do MST.

O Sindicato dos Jornalistas resgata uma consistente trajetória profissional e sua atuação nas mobilizações e greves da categoria. Saindo da cadeia em 1974, você trabalhou na Folha de S. Paulo e me lembro do orgulho que eu sentia vendo que um de nós, os perigosos e malditos "terroristas" do Tiradentes, escrevia agora como editor internacional num jornal de ampla tiragem.

Em 1978, você se tornou presidente da representação que a ABI decidiu abrir em São Paulo. Tanto você quanto Perseu, e dezenas de outros, foram banidos para sempre dos jornalões, na esteira da repressão que os principais veículos articularam como vingança pela greve daquele ano. O tiro patronal sairia pela culatra. Muitos dos atingidos passaram a dedicar-se com centralidade ao fortalecimento da imprensa popular e democrática que avançava a passos largos na trilha aberta pelo Pasquim, pelo Opinião e pelo Movimento.

Você teve participação fundamental, com seus companheiros da Ala Vermelha, no lançamento do ABCD Jornal, em 1975, com crescente penetração entre os metalúrgicos da região no mesmo período em que Lula despontava como líder.

Você colaborou com Renato Tapajós em muitas produções de cinema sobre as mobilizações operárias que mudaram o patamar da resistência à ditadura a partir de 1978. Em 1979, era possível assistir, durante as pausas das greves, as imagens marcantes do documentário Que ninguém, nunca mais, ouse duvidar da capacidade de luta dos trabalhadores.

Agora em 2021, no 54º aniversário do Golpe de 1964, a TVT exibiu novamente o filme que você realizou para nós em 2013, Um Golpe contra o Brasil, impactante, certeiro e didático documentário.

Já ficou muito longo este meu apertado abraço de despedida na forma de carta aberta.

Alípio velho, meu grande amigo, sua carta aberta terminava assim: "Pois é, meu companheiro Vannuchi, seguimos mais uma vez juntos, e até o fim, nesta nova trincheira onde, mais uma vez ainda, o que está em jogo é a classe trabalhadora, o povo e todos os/as democratas e homens e mulheres de bem deste País".

Respondo só agora. Mas saiba que sou muito grato a você. Eternamente grato. Seguimos juntos sim. E esse fim nunca chegará.

Vou inverter a citação romana de Flávio Andrade para me despedir com uma saudação que me ocorre agora:

Ave Alípio! Os que vão viver te saúdam!

Em especial os mais jovens que nós dois.

São milhares de Maianas, Camilas e Paulos, como chamam seus filhos e de Rita. Uma geração que já provou estar disposta a seguir adiante e libertar o Brasil dos muitos vírus que nos assolam hoje.

Paulo Vannuchi é integrante da Comissão Arns, jornalista, foi ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos