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Leonardo Sakamoto

Anistia aponta que "retórica anti-direitos humanos" assumiu o poder em 2019

Ágatha Félix, morta aos oito anos por um tiro de um policial militar, no Complexo do Alemão, no Rio - Divulgação
Ágatha Félix, morta aos oito anos por um tiro de um policial militar, no Complexo do Alemão, no Rio Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

27/02/2020 03h11

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O Brasil viu o discurso abertamente contrário aos direitos humanos adotado por autoridades no país se traduzir em medidas administrativas e legislativas, com impactos concretos na limitação e na perda de direitos fundamentais da população. É o que aponta o relatório "Direitos Humanos nas Américas: Retrospectiva 2019", da Anistia Internacional, uma das mais importantes organizações de direitos humanos em todo mundo, que está sendo lançado nesta quinta (27).

No capítulo sobre o Brasil, a entidade destaca a crise na Amazônia, a violência policial, a perseguição de ativistas, a pressão contra povos indígenas e a impunidade do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, que completa dois anos no próximo dia 14 de março.

"Vimos a emergência de líderes autoritários e intolerantes em toda a região em 2019. Aqueles que deveriam garantir direitos humanos de seus cidadãos foram, na verdade, os violadores desses direitos", afirmou à coluna Jurema Werneck, diretora-executiva do escritório brasileiro da Anistia Internacional.

"Assim também no Brasil: a retórica anti-direitos humanos assumiu altos cargos na República e tenta a todo o instante enfraquecer o que temos como garantia para uma sociedade justa - a Constituição Federal de 1988", completa.

Questionada se, diante dessas condições a democracia está em risco, Werneck diz que, por outro lado, houve muitas pessoas dispostas a lutar pelos seus direitos e com reivindicações justas. "Quando uma pessoa luta e consegue alcançar seu objetivo, toda sociedade é beneficiada. A Anistia Internacional é um movimento que acredita que enquanto houver luta, haverá democracia."

O relatório afirma que autoridades federais brasileiras promoveram decretos, medidas provisórias e projetos de lei que ameaçavam os direitos humanos. Cita, como exemplo, o pacote anticrime, proposto pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, por conta da "definição muito geral e imprecisa" do excludente de ilicitude no caso da legítima defesa, que "poderia ser usada para justificar o uso excessivo de força letal por agentes do Estado". Critica também das ações tomadas pelo governo federal para flexibilizar o acesso a armas de fogo.

Queimadas na Amazônia - Joao Laet / AFP - Joao Laet / AFP
Relatório da Anistia Internacional liga governo Bolsonaro ao aumento das queimadas na Amazônia
Imagem: Joao Laet / AFP

Amazônia

O balanço sobre 2019 traz números demonstrando o salto no desmatamento e nas queimadas e afirma que, no final de 2019, não havia políticas públicas efetivas para a sua prevenção, nem para a proteção das populações afetadas - como indígenas e quilombolas. Aponta também que não foram iniciadas investigações independentes ou tomadas medidas abrangentes para responsabilizar os envolvidos nos incêndios.

"Havia indícios de que os incêndios estavam ligados aos interesses do agronegócio e que eles eram usados principalmente para transformar a floresta em pastagem para gado, em alguns casos com o conluio das autoridades. A legislação brasileira continha dispositivos firmes para a proteção dos territórios dos povos indígenas e reservas ambientais. No entanto, o presidente Bolsonaro tentou ativamente minar esses mecanismos de proteção", diz a Anistia.

"Em novembro, o presidente Bolsonaro declarou que esperava que a destruição da maior floresta do mundo continuasse, em referência à promessa de sua campanha presidencial de abrir a Amazônia para mais agricultura e mineração. Embora o ministro do Meio Ambiente tenha dito que o governo esperava reduzir o desmatamento ilegal em 2020, ele não estabeleceu nenhum objetivo específico."

Povos Indígenas

O governo Jair Bolsonaro não cumpriu sua obrigação de proteger os povos indígenas e adotou medidas que aumentaram os riscos que eles enfrentavam na avaliação da Anistia Internacional. Cita, como exemplos, a retirada de poderes da Funai e declarações do próprio mandatário para desacreditar o Ibama.

"Os povos indígenas e comunidades afrodescendentes estavam sob crescente pressão pela ocupação ilegal de terras perpetradas por madeireiros e outros interesses comerciais. A supervisão do governo dessas comunidades isoladas foi reduzida e, em alguns casos, nula. Além disso, líderes comunitários e defensores de direitos humanos receberam ameaças e ataques", diz o relatório.

Usa como exemplo, os povos indígenas Karipuna e Uru-eu-wau-wau, em Rondônia, e o povo Arara no Pará, que denunciaram confiscos ilegais de suas terras ancestrais, mas não receberam resposta apropriada do governo federal.

O relatório também cita o caso do líder indígena Paulino Guajajara, um dos membros dos Guardiões da Floresta, que lutam contra a extração ilegal de madeira, morto em novembro, no Maranhão.

"O governo brasileiro não adotou medidas eficazes para garantir a justiça por esses assassinatos e continuou a criminalizar os defensores dos direitos humanos (especialmente aqueles que trabalhavam em questões relacionadas ao meio ambiente, terra e território), o que gerou uma clima de medo e fez do Brasil um lugar ainda mais perigoso para defender esses direitos."

Polícia e Forças de Segurança

Para a Anistia, as autoridades federais e estaduais adotaram um discurso que alimentou uma crescente violência contra a população, em geral, e aos defensores dos direitos humanos, em particular.

Destaca que o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, fez declarações e realizou ações relativas à chamada "guerra às drogas" como pretexto para conduzir intervenções policiais militarizadas caracterizadas por altos níveis de violência policial, crimes de direito internacional e violações de direitos humanos.

E traz dados que demonstram o aumento da letalidade policial no Estado, lembrando também as mortes dos agentes públicos de segurança.

Defensores e defensoras de Direitos Humanos

O relatório afirma que Bolsonaro, desde a campanha eleitoral critica repetidamente o trabalho de organizações não-governamentais, buscando dificultar suas atividades.

Destaca a acusação feita por ele, de que brigadistas que atuam em Alter do Chão, no Pará, seriam os responsáveis por incendiar a floresta. E uma postagem do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugerindo que o Greenpeace poderia ser responsável pelo derramamento de óleo que afetou o litoral do brasileiro, um dos maiores desastres ambientais de nossa história.

O policial militar Ronnie Lessa, acusado de matar Marielle Franco - Marcelo Theobald/Agência O Globo - Marcelo Theobald/Agência O Globo
Ronnie Lessa, acusado de matar Marielle Franco
Imagem: Marcelo Theobald/Agência O Globo

Impunidade

O capítulo brasileiro trata da investigação sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, ressaltando a prisão dos ex-policiais Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, acusados de serem os executores. Cita demanda de relatores da ONU e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para que sejam apontados os mandantes e o motivo das mortes e que todos sejam levados à Justiça, em julgamentos justos.

"Marielle Franco havia apoiado abertamente os direitos de jovens negros, mulheres, pessoas que vivem na pobreza, lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais e vítimas de violência policial no Rio de Janeiro", diz o relatório. "As autoridades rejeitaram as alegações de que a família do presidente Bolsonaro tinha laços com os responsáveis

Também cita o caso de Davi Fiuza, 16 anos, vítima de desaparecimento forçado em Salvador, em 2014, e a falta de solução para o caso.

América Latina

A Anistia afirma que ataques aos defensores de direitos humanos não são exclusividade do Brasil e que a América Latina voltou a ser a região mais perigosa do mundo para essas pessoas atuarem. Destaca os movimentos de protesto que ocorreram em vários países da região e como governos responderam com menos diálogo e mais repressão. Trata de, ao menos, 210 mortes de forma violenta em manifestações em 2019: 83 no Haiti, 47 na Venezuela, 35 na Bolívia, 31 no Chile, oito no Equador e seis em Honduras.

Para a organização, a repressão foi especialmente dura na Venezuela, de Nicolás Maduro. Em sua avaliação, as forças de segurança do país cometeram crimes internacionais e violações graves dos direitos humanos - o que inclui execuções extrajudiciais, detenções arbitrárias e uso de força excessiva, que podem constituir crimes contra a humanidade.

E, no Chile, o governo de Sebastián Piñera feriu manifestantes intencionalmente para desencorajar protestos.

Também lembra como é difícil ser jornalista por aqui, citando os - pelo menos - dez profissionais de imprensa mortos no México.

Migrantes e refugiados

O relatório fala de quase 4,8 milhões de homens, mulheres e crianças que fugiram da crise na Venezuela nos últimos anos - e das restrições impostas pelo Peru, Equador e Chile para esses refugiados.

E critica os Estados Unidos por usarem indevidamente o sistema de Justiça a fim de assediar defensores de direitos dos migrantes, além da detenção ilegal de crianças e de novas políticas para dificultar o direito de asilo. Culpa nominalmente a administração Donald Trump por colocar pessoas em perigo, obrigando a voltarem a lugares dos quais fugiram por risco de morte.

E lista programas sigilosos de deportação rápida nos EUA, a retirada de assistência jurídica a migrantes de refugiados e a pressão para que países da América Central assinem acordos para devolver pessoas que solicitam asilo para o local de onde saíram para não morrer.