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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro dispara rajada de mentiras e distorções sobre covid em 2 minutos

Colunista do UOL

16/07/2020 23h06

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Durante dois minutos, em uma live na noite desta quinta (16), Jair Bolsonaro mostrou que, mesmo covid positivo, segue na sua melhor forma - desmentindo, assim, aqueles que defendem que submergiu por conta da prisão de Fabrício Queiroz e do inquérito das fake news.

O presidente da República disparou um fuzil automático de aberrações contra a saúde pública, que já andava moribunda desde que ele tratou a doença como "gripezinha". Vamos a elas:

"Não podemos continuar sufocando a economia! Dá para entender que a falta de salário, a falta de emprego mata, e mata mais que próprio vírus? Será que tá difícil? Será que tô errando ao falar isso daí? Eu tenho que ter mais responsabilidade?"

Sim, ele está errando e, sim, ele teria que ter mais responsabilidade, pois é o presidente. Foram registradas 1.299 mortes nas últimas 24 horas, totalizando 76.822 óbitos. E nada mostra que essa curva vai se reduzir no curto prazo. Não há estudos mostrando que a falta de salário e de emprego por conta da crise já matou mais de 76.822 pessoas, nem que isso vá acontecer. A crise econômica trazida pelo coronavírus é grave, mas pode ser mitigada por medidas tomadas pelo poder público. Felizmente, o Congresso Nacional passou por cima da proposta original do governo Bolsonaro, de pagar R$ 200 por família como auxílio emergencial. Por que, se esse valor prosperasse, aí sim, teríamos muitas mortes por fome.

"Eu podia ficar quieto, afinal de contas o Supremo Tribunal Federal disse que quem decide tudo nessa área são Estados e municípios. E ponto final."

Mentira. Tem sido parte da estratégia de Bolsonaro, há alguns meses, jogar a responsabilidade pelas crises sanitária e econômica em governadores e prefeitos. Para tanto, distorce uma decisão do STF - que, na verdade, afirmou que Estados e municípios também podem decidir sobre as atividades econômicas que abrem e fecham em uma quarentena. Quem tirou o corpo fora foi o próprio Jair por livre e espontânea vontade.

"Se não tem alternativa, por que proibir [a cloroquina]? Ah, não tem comprovação científica que seja eficaz. Mas também não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz [de eficácia, provavelmente]. Nem que não tem, nem que tem."

Como o presidente se enrola no próprio argumento, o que faz com que pareça uma paródia de si mesmo feita pelo genial Marcelo Adnet, acabamos não prestando muita atenção no que diz. Para ele, não há comprovação de ineficácia da cloroquina, então as pessoas deveriam tomar o medicamento. Inverte o ônus da prova. Seguindo essa lógica torta, poderíamos sugerir que as pessoas acariciassem um gatinho. Por que não há uma pesquisa definitiva dizendo que as carícias em felinos, que geram endorfina, não potencializam o sistema imunológico que, por sua vez, cura covid-19. A questão é que acariciar o bichano seria mais saudável, porque não tem efeitos colaterais.

"É uma realidade: tem muita gente quando toma, como meu caso, no dia seguinte tava bom, pô! Foram embora os sintomas."

Da mesma forma que muita gente casou depois que colocou uma estátua de Santo Antônio, de castigo, na geladeira. Não é porque A acontece depois de B, que B acontece por causa de A. A imensa maioria das pessoas é curada da covid-19 sem tomar medicamento algum para atacar a causa da doença, apenas usando produtos para reduzir a febre e mitigar as dores. O presidente talvez desconheça, mas dentro dele há milhões de pequenas estruturas, os glóbulos brancos, que cuidam do sistema de defesa do organismo. São eles os principais responsáveis por combater o coronavírus, na maioria dos casos. Mas Bolsonaro precisa recomendar o remédio para, exatamente, ficar com os louros que seriam do sistema imunológico das pessoas.

"Por que negar [a cloroquina]? Não tem outra alternativa."

Porque uma série de pesquisas sérias demonstraram que ela não tem mais eficácia do que não tomar nada. Principalmente, em casos mais leves, como o do presidente e o da imensa maioria da população. Pelo contrário, tomar cloroquina pode levar à arritmia cardíaca (vai por mim, tomei na minha segunda malária e não foi agradável), entre outros efeitos colaterais. Ou seja, não se recomenda porque pode ser pior do que a própria doença.

Há outras saídas sim, que vem sendo ministradas, caso a caso, a pacientes internados. E haveria uma grande alternativa: um governo que acreditasse na gravidade da doença e se preocupasse com vidas da mesma forma que se preocupa com o seu mandato, impactado pela depressão econômica. Um governo que conduzisse o país a uma quarentena consistente - o que nos levaria a uma retomada mais rápida. A exemplo de países liderados por mulheres que se guiam pela ciência, como a Alemanha e a Nova Zelândia.

"Imagina daqui a algum tempo... Por que vai ter a comprovação científica, mais cedo ou mais tarde... Diga que a hidroxicloroquina é eficaz nesse caso? E aqueles que proibiram em seus estados e proibiram em seus municípios, o uso disso aqui? Quantas mortes podiam ser evitadas?"

Pesquisas sérias já apontam para a não-eficácia. Mas imagina daqui a algum tempo... Por que vai ter a comprovação científica, mais cedo ou mais tarde... Diga que a hidroxicloroquina é ineficaz nesse caso? E aqueles que permitiram no país, o uso disso aqui? Quantas mortes podiam ser evitadas? Apostar em um remédio sem eficácia comprovada, usando isso como alavanca para mandar pessoas para a rua acreditando existir um elixir mágico, não evita mortes, pelo contrário. Bolsonaro está pronto para aceitar a responsabilização por óbitos desnecessários em um Tribunal Penal Internacional?

"Também agora está aí, estão apresentando o Annita. Não sou médico, não recomendo nada para ninguém. O que recomendo é que procure o médico... Você que está com parente, um amigo, um idoso que tá com sintomas, procure um médico. Doutor, ministra ou não hidroxicloroquina? Ministra Annita ou não? O que o senhor recomenda? O médico vai falar alguma coisa. Pode falar 'vai para casa e deite'. Aí você decide e procura outro médico se quiser."

Já não bastasse defender a cloroquina, ele também defende um vermífugo que não tem eficácia comprovada. O presidente precisa que a população acredite em uma muleta, qualquer que seja, para aceitar voltar ao trabalho imediatamente. Daí, se o cidadão pegar covid e ela for fraca, vai dizer que é prova de que é uma "gripezinha". Se pegar e o sistema imunológico curar sozinho, o mérito foi o remédio do Bolsonaro. Se pegar e ficar bem mal, precisando de internação, a justificativa é de que demorou para tomar o produto por culpa de governadores e prefeitos. E se pegar e vier a falecer, paciência, todo mundo morre, é o destino de todo mundo, como bem disse ele.