Topo

Leonardo Sakamoto

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Ao tratar golpe como bravata, Aras põe a mão no fogo por Bolsonaro

Colunista do UOL

24/08/2021 17h35Atualizada em 25/08/2021 17h49

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Ao menosprezar as ameaças de Jair Bolsonaro às eleições e às instituições democráticas em sabatina no Senado Federal, o procurador-geral da República, Augusto Aras, reforçou sua imagem como fiador do comportamento golpista do presidente. E, ao aprovar sua recondução, primeiro por 21 votos a 6, na Comissão de Constituição e Justiça, e, depois, por 55 a 10 no plenário, os senadores também.

Cobrado por alguns poucos parlamentares pelos ataques aos tribunais superiores e à urna eletrônica feitos pelo presidente, bem como sua sabotagem no combate à covid-19, Aras quis fazer crer que Bolsonaro age no campo na "retórica política", não tendo ultrapassado a liberdade que a Constituição Federal e o cargo lhe garantem.

E afirmou que "bravatas ditas em uma live" podem ou não ter propensão para se transformarem em realidade, sendo necessário que se faça distinção entre elas. Encarou, portanto, as ameaças à democracia como algo com o qual não devemos nos preocupar.

"Várias perguntas foram feitas aqui sobre o que eu achava de ameaças à institucionalidade. Nós só podemos medir qualquer tipo de ameaça se dermos concreção a esse discurso, fora disso não temos como fazê-lo", afirmou o PGR.

A questão é que o presidente da República chama as Forças Armadas de "meu exército" e insinua usá-las em nome de seus interesses sendo o comandante-em-chefe das Forças Armadas e contando com forte influência sobre estratos das polícias militares nos estados.

É diferente de um cidadão qualquer fazer a mesma declaração em suas redes sociais. Jair tem condições de executar suas promessas e não se acanha em dar demonstrações de força - mesmo que ela seja de segunda mão e solte muita fumaça.

Sob a justificativa de não criminalizar a política e defender a liberdade de expressão, um dos pilares da democracia, o procurador-geral da República age de forma leniente com quem comete crimes contra a democracia, o que ameaça tolher as liberdades da população. Em outras palavras, está sendo tolerante com quem prega a intolerância e tem meios para efetivá-la.

Apesar de ter rechaçado as denúncias de alinhamento entre a Procuradoria-Geral da República e a Advocacia-Geral da União, a grande maioria dos casos em que Aras poderia causar dano pessoal a Jair Bolsonaro não vão adiante. Talvez porque estivesse de olho em uma vaga no STF ou, ao menos, porque queria garantir sua recondução ao que cargo que ocupa.

Dizendo que não é "censor", ele frisou, na sabatina, que a liberdade de expressão não admite censura prévia. Mas o bom uso da liberdade demanda responsabilização de quem tenha extrapolado os seus limites, atingindo os direitos de terceiros. Aras fez um contorcionismo para justificar sua omissão em responsabilizar Jair pelos crimes que cometeu usando a liberdade dele como arma. Afirmou que não viu no comportamento do presidente mais do que bravatas.

O problema é que a democracia é como um copo frágil que se estilhaça ao quebrar. E se isso acontecer, não vai adiantar para Aras chorar o leite derramado sobre sua biografia dizendo que estava enganado.

Em tempo: O procurador-geral da República afirmou, várias vezes, que a liberdade de expressão é o princípio central tutelado pela Constituição, fazendo eco a Jair Bolsonaro. Na verdade, quando se trata de direitos humanos, não há escalonamento: todos os direitos são indivisíveis, interdependentes, inter-relacionados. Na escala de valores, portanto, a vida não está abaixo da liberdade do presidente. Ou, pelo menos, não deveria estar, o que ajuda a explicar uma falta de preocupação de Bolsonaro e seus aliados com quase 580 mil mortos por covid-19.