Leonardo Sakamoto

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Opinião

Kamala tem chance real contra Trump ou é só otimismo da torcida democrata?

Com a desistência do presidente Joe Biden em concorrer à reeleição e sua vice, Kamala Harris, praticamente se firmar como a candidata democrata para enfrentar Donald Trump, uma onda de otimismo varreu as análises dos progressistas. Crendo que falta um "advogado do diabo", enumerei dez pontos que questionam as chances eleitorais:

1) Biden já era um ex-candidato em exercício. Se não desistisse agora, seria rifado na Convenção Nacional Democrata. Jornais e analistas pelo mundo saúdam-no por seu altruísmo em abrir mão. Bobagem. É a forma de valorizá-lo e, por conseguinte, evitar danos à candidatura democrata. Na verdade, Joe consumiu tempo precioso do seu partido ao insistir em algo que estava selado como fracasso desde que pifou no debate na TV com Trump.

2) A influência do New York Times na formação do pensamento da mídia brasileira é estupendo, como já cantava Jorge Ben Jor. O jornal, de quem sou assinante e leitor, é, sem dúvida, um dos melhores do mundo. Mas deve-se considerar que ele defende abertamente a candidatura democrata contra Trump (nos EUA, é comum que os veículos declarem voto em seus editoriais, no Brasil, a gente faz de conta que dono de jornal não tem opinião). Por isso, achar que os Estados Unidos se refletem nas páginas de opinião do Times é um erro crasso.

3) Aliás, Nova York, Austin, São Francisco e Portland não são, necessariamente, a cara de eleitorado norte-americano. Os democratas não precisam se preocupar na Califórnia, onde sempre venceram. Tampouco têm esperança de ganhar em locais eminentemente republicanos. A questão é a opinião dos eleitores nos "swing states", os estados-pêndulo, preocupados com a classe trabalhadora empobrecida. E, por isso, onde o discurso anti-imigração e xenófobo explorado por Trump (que diz que mexicanos e demais latinos são a causa da violência e chineses roubam empregos) tem terreno para crescer.

4) Realmente é incrível que os Estados Unidos possam eleger a sua primeira mulher presidente e, mais do que isso, uma mulher negra e descendente de asiáticos. É a concretização da narrativa do sonho americano. Tão incrível que é difícil imaginar que isso, de fato, aconteça em um país no qual o racismo e o machismo influenciam as relações sociais em vários estados. E que a política vive em torno de homens brancos e, não raro, idosos - não à toa, dois deles concorriam à Presidência. É triste que, por isso, uma das maiores forças de Kamala também seja, dependendo do local e do eleitorado, sua maior fraqueza.

5) Questões como o direito ao aborto e misoginia podem realmente emparedar Trump. Além disso, o debate sobre os EUA ter um golpista disputando a Casa Branca deveria ser constrangedor. Mas a pauta que deve fazer forte diferença nos "swing states" é o custo de vida da classe trabalhadora. O desemprego caiu, a renda aumentou, a economia cresceu. A questão é que o custo de vida está alto, comida cara, e, principalmente, preço da moradia está pela hora da morte. É isso o que Kamala vai ter que responder.

6) Os democratas não souberam comunicar decentemente as conquistas econômicas do governo Biden, tampouco reduzir os preços a patamares pré-pandemia. E isso cobra um preço junto aos blue collars, a classe operária, forte em parte dos "swing states". É mais ou menos o cenário que Lula terá que enfrentar em 2026. Neste momento, no Brasil, o PIB cresce, o desemprego cai e a renda aumenta, mas a percepção na melhora na qualidade de vida demora a vir, pois o preço de alimentos, como o arroz e o feijão, segue e alto e subindo. Inclusive, se a campanha de Kamala Harris encontrar uma forma de comunicar a melhora na economia norte-americana, isso poderá ser reproduzido por Lula em 2026. Caso ela tenha sucesso, claro.

7) Para alguns, Kamala Harris é demasiadamente progressista, para outros, absurdamente conservadora. Depende bastante de onde você está no espectro político. Em termos de direito ao aborto, ela poderá ser progressista (a maioria dos norte-americanos não quer o Estado inteferindo no direito individual das mulheres, mesmo após a Suprema Corte mudar o entendimento federal), mas em termos de guerra, não vai poder dar as costas para o apoio de seu governo à carnificina em Gaza (perpetrada pelo aliado Israel, com seu suporte). No primeiro caso, terá apoio de mulheres, no segundo, perde o apoio de jovens e árabes.

8) As eleições passadas foram marcadas pelos protestos contra a violência policial sofrida pela população negra. Isso pesava contra o governo Trump e gerava uma identidade reativa. Claro que Kamala Harris pode atrair o público negro, mas essa atração não é automática, nem imediata, vai ter que mostrar que suas pautas estão em consonância com a melhora da qualidade de vida e dos direitos desse grupo. E o passado dela como chefe dos procuradores da Califórnia vai pesar contra.

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9) Ela não é popular como Michelle Obama, muito menos como Oprah Winfrey. Seu discurso chocho, nesta segunda (22), mostra que vai ter que comer muito feijão com arroz (rever item 6). "Ah, mas Biden discursando era vergonhoso, trocando Kamala por Trump e Zelenski por Putin." Sim, claro, por isso foi um alívio ele sair da disputa. Mas foi o bode saindo da sala. Ela, que é inteligente e foi muito podada pela cúpula democrata, terá que conquistar a simpatia do eleitorado. E, lembremos, que precisará percorrer aquela milha extra por não ser branca, nem homem na sociedade supracitada.

10) Por conta das doações de campanha, o apoio do atual presidente e de uma série de outras razões, dificilmente ela não será candidata à Presidência da República. Outros nomes que foram aventados já vão dando, publicamente, suporte a ela, na esperança de serem escolhidos como vices. A chance é maior de escolher alguém forte em um estado decisivo, como os governadores da Pensilvânia ou do Michigan. O problema é que as eleições são em 5 de novembro, mas vários locais permitem votação antecipada desde setembro. Ou seja, o tempo é curto para muitas decisões e mais ainda se rolar dedo no olho e gritaria na escolha de nomes.

Para muita gente, a decisão sobre quem vai mandar nos Estados Unidos é entre uma tragédia incomensurável e algo ruim. Porque, convenhamos, políticos republicanos matam iraquianos, mas democratas permitem o genocídio de palestinos.

A questão é que, no final das contas, Trump é a escolha pela negação completa da civilização, respaldado hoje por trabalhadores desalentados, mas também por supremacias brancos, armamentistas, xenófobos, machistas, racistas, enfim. Uma coisa lidar com o comportamento de gaviões democratas e de seu apoio ao complexo industrial-armamentista. A outra, é a escolha do golpismo e do esmagamento da tolerância.

Lembrar isso é importante, mas no final, quem vai decidir é o voto do trabalhador norte-americano que acreditou na promessa de fartura trazida pela globalização e se sentiu traído quando viu fábricas fecharem e migrarem para a China.

Muitos desses trabalhadores caíram no discurso trumpista de que "empregos verdes", que causam menos impacto ambiental, uma das promessas de Biden, leva estados que exploram gás, carvão e petróleo à pobreza. Não é a discussão sobre lutar contra a mudança do clima, portanto, que levará votos a ela, mas sobre a garantia de que empregos bons estão sendo gerados nesse processo nesses estados decisivos.

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Um convencimento difícil para ser feito em tão pouco tempo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL