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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Brasil saltou para 33 milhões de famintos enquanto Bolsonaro curtia jet ski

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

08/06/2022 08h51

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Enquanto 33,1 milhões de pessoas passam fome, o presidente da República elegeu como grandes preocupações nacionais insultar o Supremo Tribunal Federal, atacar a urna eletrônica, reduzir o direito ao aborto, reclamar de questões de gênero, armar a população até os dentes, promover motociatas, andar de moto aquática, ressuscitar o fantasma do comunismo, agredir quem denuncia os problemas do país.

A quantidade de brasileiros que passam fome foi de 19,1 milhões para 33,1 milhões em menos de dois anos. Isso significa um aumento de 9,1% para 15,5% da população. Destes, 15,9 milhões afirmam que tiveram que adotar estratégias consideradas inaceitáveis ou vergonhosas para não morrer. Como disputar restos de ossos ou pegar comida no lixo. No Brasil, o chamado de celeiro do mundo.

O levantamento que investiga a segurança alimentar no contexto da pandemia foi realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) e tem margem de erro de 0,9 ponto.

Bolsonaro se dedica a pautas de costumes porque não consegue garantir inflação baixa e renda ou ele não consegue garantir inflação baixa e renda porque se dedica a pauta de costumes? Não há, contudo, um "Paradoxo Jair", como havia na bolacha, porque as duas coisas são verdade, lembrando que a inflação da cesta básica chegou a 27%, em abril, em São Paulo, e a renda caiu 7,9% em um ano segundo o IBGE.

Questionado sobre a fome, o presidente terceiriza a responsabilidade dizendo para procurar o povo do "fica em casa" - a forma jocosa com a qual ele trata as políticas que evitaram que mais brasileiros morressem por covid-19. Ainda assim, devido à sabotagem que ele perpetrou no combate à pandemia, temos quase 670 mil mortos.

Caso ele não tivesse atacado sistematicamente as medidas de isolamento social e, ao mesmo tempo, combatido o uso de máscaras e fechado contratos de compra de vacinas ainda em 2020, a pandemia seria mais curta e a economia teria voltado a um (quase) normal muitos antes, com menos mortos e menos desemprego. Sim, a ação de Jair atrasou a retomada econômica.

Quando o último levantamento da Penssan avisou que havia 19,1 milhões de famintos, no final de 2020, Bolsonaro fazia o quê? Cancelava o auxílio emergencial no 31 de dezembro e só o retomou em abril, após intensa pressão social, com valores mixurucas de R$ 150, R$ 250 e R$ 375 - muito menos que os R$ 600 ou R$ 1200 aprovados pelo Congresso no primeiro semestre de 2020. Naquele momento, mais de 4 mil pessoas morriam por dia transformando o Brasil no cemitério do mundo.

Parte da alta do dólar também pode ser creditada a ele, que, de um lado, trouxe instabilidade à política, criando um ambiente com menos segurança para investidores, e, de outro, seguiu errante na gestão da economia, atendendo a interesses de aliados no Congresso, preocupando-se apenas em evitar o impeachment e pavimentar a reeleição. Dólar mais alto impacta no preço do gás de cozinha e dos combustíveis e, por conseguinte, na inflação dos alimentos.

'O pão de cada dia quem me dá é o lixo'

Ao mesmo tempo, Bolsonaro tem tirado repetidas folgas para andar em motos aquáticas, viajar para a praia, ir a jogos de futebol, andar em carros de corrida, custando milhões do dinheiro do contribuinte. De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, ele teve 48 dias úteis sem nenhum compromisso oficial segundo sua agenda, descontado os dias que passou internado, e em outros 69, começou a trabalhar só depois do almoço. Abandonou o expediente 33 vezes para participar de motociatas, cavalgadas, carretas e similares com objetivo de fazer campanha eleitoral antecipada.

A inflação, hoje, está em dois dígitos, corroendo o poder de compra de salários, de remunerações do trabalho informal, de pensões e aposentadorias e mesmo do Auxílio Brasil. O resultado é um carrinho de supermercado mais vazio ou mesmo pular refeições para quem não tem cartão corporativo ilimitado, como o presidente.

"O pão de cada dia quem me dá é o lixo. Todo dia, meus filhos e eu vamos para o lixo para comer. Quando o caminhão chega, a gente tem que ser muito ligeira para pegar." A declaração é de uma mulher que disputava restos de alimentos em um caminhão de lixo em Fortaleza - cena que viralizou pelas redes, tornando-se representativa deste momento do país.

Não foi a única. Em outro caso, um caminhão que transportava restos de carne e ossos era disputado por famílias no Rio de Janeiro. O motorista afirmou ao jornal Extra que, antes, as pessoas buscavam os ossos para os cachorros, mas hoje pedem para si.

Na mesma época em que essas imagens provocavam indignação, no início de outubro, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) soltava a previsão de que o Brasil devia ter uma safra recorde de grãos. A economia brasileira, uma plataforma de exportação de commodities, abastece o mundo, mas não a nossa própria despensa. Vale lembrar isso, quando tentarem te convencer que o problema não é a desigualdade social, mas apenas a pobreza.

Enquanto isso, o governo desmantelou políticas de compra de alimentos da agricultura familiar para a distribuição para escolas e comunidades pobres. Isso ajudava a gerar empregos e a matar a fome. Mas a atual gestão deve ver como coisa de comunista.

E aqui me lembro de uma citação atribuída ao já falecido Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que lutou contra a ditadura e esteve sempre ao lado dos mais pobres: "Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão, mas se falo das causas da fome, me chamam de comunista".

Durante a campanha eleitoral, em outubro de 2018, Jair Bolsonaro afirmou, em entrevista à Rádio Jornal, de Barretos, que o objetivo de seu governo era fazer "o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás". Em termos da fome, ele conseguiu. É novembro de 2021, mas parece a luta contra a carestia do início dos anos 1970, escondida pela ditadura militar.

Em muitos lugares, tudo isso geraria uma convulsão social. No Brasil, contudo, o sistema é desenhado para a contenção.

Lembram do número de 15,9 milhões que afirmam que tiveram que adotar estratégias consideradas inaceitáveis ou vergonhosas para não morrer?

Após ter sido presa por furtar dois pacotes de macarrão instantâneo, dois refrigerantes e um suco em pó, no dia 29 de setembro do ano passado, em um supermercado de São Paulo, uma mulher teve seu pedido de liberdade negado duas vezes pela Justiça. Mãe de cinco filhos, desempregada, morando com a família na rua, ela disse que roubou por fome.

Mas como não era o primeiro crime que havia cometido, os juízes não queriam soltá-la. Foi necessária uma comoção nacional e uma decisão de uma alta corte para que fosse liberada. Seu roubo havia custado R$ 21,69.

Parte do Brasil convive bem com a fome dos outros, a começar pelo próprio presidente da República. Contanto que a fome não atrapalhe, roncando muito alto.