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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

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Entidade empresarial põe culpa no Bolsa Família por 'escravizados do vinho'

Ginásio recebe escravizados na produção de vinho no RS, que relataram tortura com choque e gás de pimenta - Inspeção do Trabalho
Ginásio recebe escravizados na produção de vinho no RS, que relataram tortura com choque e gás de pimenta Imagem: Inspeção do Trabalho

Colunista do UOL

28/02/2023 11h03

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Após o resgate de 207 pessoas em situação análoga à de escravo em uma prestadora de serviço para vinícolas como Aurora, Garibaldi e Salton, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (RS) relacionou o caso ao pagamento de benefícios sociais a trabalhadores pobres. Ou seja, a programas como o Auxílio Brasil e o Bolsa Família.

Os trabalhadores, que atuavam na carga e descarga e na colheita de uvas, denunciaram que foram vítimas de ameaças e maus tratos, incluindo o uso de choques elétricos, spray de pimenta e cassetetes. Resgatados na semana passada, eram, em sua quase totalidade, oriundos da Bahia.

Em nota pública, o centro afirmou que o ocorrido tem conexão com "a falta de mão de obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema". Para os empresários, "há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade".

Ou seja, na opinião da entidade, o pagamento de benefícios sociais tem produzido pessoas "inativas" que poderiam estar sendo envolvidas na cadeia produtiva do vinho, o que reduziria a necessidade de contratação de mão de obra de fora. "É tempo de trabalhar em projetos e iniciativas que permitam suprir de forma adequada a carência de mão de obra", disse a nota.

Italvar Medina, vice-coordenador da área do Ministério Público do Trabalho responsável pelo combate ao trabalho escravo e ao tráfico de pessoas, discorda dessa alegação. Para ele, as empresas devem fornecer oportunidades de trabalho dignas, que respeitem a legislação. "O que, decerto, também atrairia o interesse dos trabalhadores locais para possíveis contratações", diz.

"Elas têm o dever de fiscalizar os contratos e acompanhar o cumprimento dos direitos trabalhistas em sua cadeia produtiva, não podendo assumir uma posição de cegueira deliberada e lucrar fortunas à custa da espoliação e sofrimento alheios", afirma. Segundo Medina, não cabe às empresas alegar desconhecimento das condições de trabalho de seus terceirizados.

O Centro da Indústria, Comércio e Serviços afirmou também que "é necessário que as autoridades competentes cumpram seu papel fiscalizador e punitivo para com os responsáveis por tais práticas inaceitáveis", mas exclui as vinícolas disso. A nota diz que as vinícolas "desconheciam as práticas da empresa prestadora do serviço sob investigação e jamais seriam coniventes com tal situação".

Defende que elas "são, sabidamente, empresas com fundamental participação na comunidade e reconhecidas pela preocupação com o bem-estar de seus colaboradores/cooperativados por oferecerem muito boas condições de trabalho, inclusive igualmente estendidas a seus funcionários terceirizados". E completa: "a elas, o CIC-BG reforça seu apoio".

As vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi informaram a imprensa que não tinham conhecimento do ocorrido, que não compactuam com a situação trabalhista encontrada e que os contratos com a empresa Fênix eram apenas para carga e descarga de uvas.

O Ministério Público do Trabalho afirma, contudo, que as responsabilidades ainda estão sendo analisadas. "A cadeia produtiva do vinho só existe se houver o trabalhador trazendo a uva que está no parreiral. As empresas tomadoras de serviço não podem dizer que não sabem o que está acontecendo na ponta", segundo a procuradora do Trabalho Franciele D'Ambros, que participou da operação.

Nota do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (RS) - Reprodução - Reprodução
Nota do Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (RS)
Imagem: Reprodução

Trabalhadores narram tortura com choque e spray de pimenta

A operação teve início, nesta quarta (22), após um grupo fugir de um alojamento sem condições de higiene onde, segundo relataram, sofriam agressões com choques elétricos e spray de pimenta. O coordenador do projeto de combate ao trabalho escravo da Superintendência Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, Henrique Mandagará, afirma que a fiscalização apreendeu tasers e tubos de spray de pimenta no local. Vigilância armada era usada para garantir que tudo permanecesse do jeito que o patrão queria.

"Um cassetete era usado para manter o portão do alojamento aberto, o mesmo cassetete que depois era empregado para bater nos trabalhadores", conta o auditor fiscal do trabalho Rafael Zan, que também estava na operação. Era uma forma, em sua avaliação, do empregador impor sua disciplina aos trabalhadores.

Recrutados na Bahia, eles já chegavam com dívidas de alimentação e transporte e, no alojamento, tinham que comprar produtos a preços muito acima do valor de mercado. Tudo isso era anotado como dívida, o que prendia os trabalhadores aos patrões.

Quando receberam a proposta de emprego, foi prometido a eles salários de R$ 4 mil por mês e boas condições de serviço, como alimentação e alojamento decentes - o que não veio a acontecer. A jornada de trabalho, segundo a fiscalização, chegava a ir das 4h às 21h, configurando uma situação de exaustão. Pagamentos também estavam atrasados. Para piorar, quem não tinha dinheiro pegava empréstimo a juros que chegavam a 50% durante a safra de um outro aproveitador para poderem comprar itens de primeira necessidade.

A empresa Fênix Serviços de Apoio Administrativo, administrada por Pedro Augusto Oliveira de Santana, sediada em Bento Gonçalves, prestava serviços para as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, entre outras.

Participaram da operação, além da Inspeção do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Federal. A assistência social do município e a Secretaria de Justiça do Rio Grande do Sul deram apoio no processo de acolhimento de vítimas.