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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Lei Áurea, 135 anos: Brasil resgata maior número de escravizados desde 2008

Operação resgatou 139 trabalhadores da escravidão em fazenda de cana em Acreúna (GO) - Inspeção do Trabalho
Operação resgatou 139 trabalhadores da escravidão em fazenda de cana em Acreúna (GO) Imagem: Inspeção do Trabalho

Colunista do UOL

11/05/2023 17h39

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Desde o início do ano, 1.201 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à de escravo em 97 operações de fiscalização, de acordo com dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho divulgados por ocasião do 135º aniversário da Lei Áurea - a ser celebrado neste sábado (13). No mesmo período de 2022, o acumulado foi de 500 resgatados em 61 ações.

Esse é o maior patamar em 15 anos: em 2008, foram 1696 libertados entre janeiro e o início de maio, segundo o Ministério do Trabalho de Emprego. Do momento em que governo brasileiro reconheceu a persistência dessa forma de exploração diante das Nações Unidas e criou o sistema público para enfrentamento ao crime em 1995 até agora foram 61.459 pessoas flagradas sob escravidão contemporânea.

As operações do grupo especial de fiscalização móvel, que contam com a participação da Inspeção do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Federal, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal e da Defensoria Pública da União, entre outros, constataram escravizados em 63% dos casos averiguados.

No próximo dia 15 de maio, esses grupos - base do combate à escravidão contemporânea no Brasil - completam 28 anos de funcionamento. Foram quase R$ 139,3 milhões pagos aos trabalhadores como salários e direitos trabalhistas desde sua criação.

Uma das razões para o alto número de resgatados em 2023 é a realização de operações em atividades intensivas em mão de obra, ou seja, que empregam muita gente.

Duas operações encontraram 212 e 139 trabalhadores escravizados na lavoura de cana-de-açúcar, em Goiás, uma flagrou 207 na cadeia de produção do vinho no Rio Grande do Sul e outra, 110 operários atuando em uma linha de transmissão em Minas Gerais. Juntas, apenas quatro ações representaram 668 resgatados, ou 56% do total.

"Os maiores casos de trabalho escravo de 2023, que elevaram o número de resgatados a um recorde dos últimos anos, estão ligados à terceirização", afirmou à coluna o chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, o auditor fiscal do trabalho Maurício Krepsky. "A permissão legal de terceirizar trouxe uma sensação de irresponsabilidade social na cadeia de valor das empresas."

Maior resgate ocorreu na cana em GO; segundo maior, no vinho no RS

Minas Gerais (21), Goiás (11) e Rio Grande do Sul (7) lideram em número de operações realizadas no período. Enquanto isso, Goiás (372), Rio Grande do Sul (296) e Minas Gerais e São Paulo (156 cada) estão à frente em quantidade de pessoas resgatadas.

As atividades econômicas com maior quantidade de vítimas neste ano foram a produção de cana-de-açúcar (223), atividades relacionadas à pecuária (212), cultivo de uva (207) e construção civil (110). Foram quase R$ 5 milhões de salários e direitos pagos aos trabalhadores.

A ação com maior repercussão do ano foi a que resultou em 207 pessoas resgatadas da produção de uvas em Bento Gonçalves (RS). Os trabalhadores denunciaram que foram vítimas de ameaças e maus tratos, incluindo o uso de choques elétricos, spray de pimenta e cassetetes.

Eles trabalhavam para uma empresa prestadora de serviço contratada pelas vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi.

De acordo com coordenador do projeto de combate ao trabalho escravo da Superintendência Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, Henrique Mandagará, "o nível de agressão física contra os trabalhadores foi o que chamou mais a atenção". Trabalhadores eram ameaçados com frequência.

"Um cassetete era usado para manter o portão do alojamento aberto, o mesmo cassetete que depois era empregado para bater nos trabalhadores", conta o auditor fiscal do trabalho Rafael Zan, que também estava na operação. Era uma forma, em sua avaliação, do empregador impor sua disciplina aos trabalhadores. No total, 95% eram negros e 93%, baianos.

E a maior operação do ano resgatou 212 trabalhadores do plantio de cana em Goiás em março. Eles estavam alojados em Itumbiara e Porteirão (GO) e Araporã (MG) e atuavam para a mesma prestadora de serviços que fornecia mão de obra a quatro fazendas e uma usina.

Arregimentados em seus estados de origem através de "gatos" (contratadores de mão de obra) e transportados de forma clandestina para atuar na produção de cana em Goiás, os trabalhadores estavam submetidos a condições de degradantes, segundo a fiscalização.

"Como a empresa não fornecia alimentação, eles comiam o que tinham, muitas vezes só arroz com salsicha. Estavam em barracos extremamente precários, sem ventilação, mofados, com paredes sujas, goteiras, sem chuveiro. A empresa terceirizada vendia as ferramentas aos trabalhadores, como enxadões, o que, por lei, deveria ser fornecido gratuitamente", explicou à coluna o auditor fiscal Roberto Mendes, coordenador da operação.

O aumento no número de vítimas flagradas pela fiscalização não significa necessariamente que o trabalho escravo está crescendo no Brasil. Como não há estimativa confiável que aponte quantas pessoas são exploradas a cada ano, não é possível afirmar que a escravidão cresceu ou reduziu. Apenas que os resgates e as operações aumentaram.

Resgate de trabalhadores em situação análoga à de escravos em fazenda de café em 2023 - Inspeção do Trabalho - Inspeção do Trabalho
Resgate de trabalhadores em fazenda de café em Minas Gerais em 2023
Imagem: Inspeção do Trabalho

Trabalho escravo, 135 anos depois

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

Por isso, os movimentos negros explicam que o 13 de maio remete a uma abolição imperfeita e tardia, adiada ao longo da segunda metade do século 19 pelo poder econômico. Enquanto isso, o dia 20 de novembro, escolhido para celebrar a Consciência Negra e o protagonismo de mulheres e homens negros, é uma data criticada por muitos daqueles que dizem não haver racismo no Brasil.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Trabalhadores têm sido encontrados em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordeis, no trabalho doméstico. A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada com trabalho escravo desde 1995.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ou pelo Disque 100. Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT