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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

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86% dos adolescentes resgatados do trabalho escravo em 2023 são negros

Operação em Uruguaiana (RS) resgatou 11 adolescentes do trabalho escravo  - Divulgação/Polícia Federal
Operação em Uruguaiana (RS) resgatou 11 adolescentes do trabalho escravo Imagem: Divulgação/Polícia Federal

Colunista do UOL

12/06/2023 13h41

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Desde que o governo brasileiro criou o sistema de combate ao trabalho análogo ao de escravo, em 1995, 1.016 crianças e adolescentes foram resgatadas dessas condições. Apenas em 2023, foram 29 adolescentes flagrados sendo explorados, a imensa maioria, negros.

Os dados foram divulgados pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Celebra-se, nesta segunda (12), o Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, instituído pela Organização Internacional do Trabalho.

Nos últimos 28 anos, o Brasil explorou 378 pessoas menores de 16 anos e 637 entre 16 e 18 anos nessas condições. No total, quase 61,5 mil trabalhadores foram resgatados no período.

Das crianças e adolescentes flagradas em escravidão em 2023, 41% tinham o ensino fundamental incompleto e 86% se autodeclaravam negros, segundo dados da fiscalização. Para efeito de comparação, negros perfazem 53% da população brasileira segundo o IBGE.

"A maioria dos trabalhos executados por crianças e adolescentes resgatadas de trabalho escravo não são sequer permitidos ou se enquadram também nas piores formas de trabalho infantil", afirma o chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), o auditor fiscal do trabalho Maurício Krepsky.

Para além do trabalho escravo, a lei proíbe quem tem menos de 18 anos de atuar em atividades relacionadas na Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), de acordo com o decreto 6.481/2008. Ele regulamenta a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho que trata do tema.

E o artigo 7º da Constituição diz que é ilegal o trabalho noturno, perigoso ou insalubre de crianças e adolescentes com menos de 18 e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Contudo, no Congresso Nacional tramitam propostas para reduzir a idade legal a menos de 14 anos. Trabalho com agrotóxicos entra nessa categoria.

Dos 85 trabalhadores resgatados em uma lavoura de arroz, em Uruguaiana (RS), em março deste ano, 11 eram adolescentes.

De acordo com a fiscalização, os trabalhadores não tinham acesso a instalações sanitárias e água fresca. A comida muitas vezes era consumida azeda e não havia equipamento de proteção individual, apesar de terem contato com agrotóxicos. O calor escaldante e as longas jornadas provocavam desmaios. O alojamento era um galpão fechado sem higiene. A Basf foi considerada responsável pela situação.

Trabalho escravo infantil doméstico

Passado um primeiro momento de arrancada na prevenção e eliminação do trabalho infantil no Brasil, do início dos anos 1990 a meados dos anos 2000, o país enfrentou uma crise econômica e, com ela, o desafio de voltar ao ritmo de queda.

Enquanto a primeira fase foi marcada pela retirada de crianças e adolescentes das cadeias formais de trabalho, o desafio agora são as piores formas, que o poder público tem mais dificuldade de alcançar. Que inclui o trabalho informal (como vendedores) ou ilegal (como o tráfico de drogas) urbano, a exploração sexual, o trabalho doméstico e algumas formas de trabalho rural.

"Quando constatado o trabalho de criança ou adolescente, a fiscalização considera os impactos das violações que venham a ser verificadas na formação e constituição física e psicossocial, dada a particular condição de pessoa em desenvolvimento", diz Krepsky.

Há casos de crianças escravizadas que se tornam adultos cativos.

Na semana passada, o resgate de Sônia Maria de Jesus da residência do desembargador Jorge Luiz de Borba do Tribunal de Justiça de Santa Catarina viralizou nas redes. Ela trabalhou como doméstica para a família por 37 anos, tendo chegado à casa de Borba entre seus 12 e 13 anos de idade. Sônia é negra e tem deficiência auditiva.

Após o escândalo vir a público, ele afirmou quem "vai ingressar com o pedido judicial para reconhecimento da filiação afetiva de Sônia, garantindo-lhe todos os direitos hereditários."

Esse caso se repete em outros lares, com crianças colocadas para trabalhar como domésticas desde cedo e permanecendo nesse status por décadas. Uma mulher de 84 anos foi resgatada de condições análogas às de escravo após 72 anos trabalhando como empregada doméstica para três gerações de uma mesma família no Rio de Janeiro em maio do ano passado. Nesse período, cuidou da casa e de seus moradores, todos os dias, desde os 12 anos, sem receber salário, segundo a fiscalização.

De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Previdência, essa é a mais longa duração de exploração de uma pessoa em escravidão contemporânea desde que o Brasil criou o sistema de fiscalização para enfrentar esse crime em 1995. A mais longa duração conhecida, claro.

Trabalho escravo hoje no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, são coordenados pela Inspeção do Trabalho do MTE e contam com a participação do Ministério Público do Trabalho, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Defensoria Pública da União, entre outras organizações.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT