Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Pastor Valadão usa tática bolsonarista ao incitar ódio para manipular fiéis
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O pastor André Valadão cometeu um grave crime ao incitar violência contra a população LGBTQIAPN+ durante um culto em português na Igreja Lagoinha de Orlando, nos Estados Unidos. Disse que, se pudesse, Deus "matava tudo e começava tudo de novo", mas como isso não é possível, "agora tá com vocês". E completou: "vamos para cima".
Após representações movidas contra ele por parlamentares como Erika Hilton (PSOL-SP) e Fabiano Contarato (PT-ES), Valadão disse que foi mal compreendido, que sua pregação nunca será sobre matar pessoas, que a culpa da polêmica são de "narrativas que tentam colocar na mídia" e que defendeu na verdade "que cabe a nós levar o homem, o ser humano, ao princípio daquela que é a vontade de Deus".
TBP: Tática Bolsonarista Padrão, de atacar e depois chamar de louco quem reclamou do ataque porque teria entendido "errado". Mas o público que recebeu a mensagem entendeu muito bem o que ele quis dizer. Neste caso, a tática é duplamente bolsonarista porque gênero é o espantalho-padrão do ex-presidente e seguidores.
O que ele fez não foi exercer liberdade religiosa, mas incitar a morte de outro grupo social minoritário em direitos, o que é considerado discurso de ódio na definição das Nações Unidas. Mas não só isso: a pregação girou em torno de um tema que encontra eco entre conservadores, que é a questão de gênero. Lideranças religiosas e políticas manipulam o medo infundado de uma parte da população usando esse temor (de que a população LGBTQIAPN+ é como um vírus que leva o mal para as crianças) a fim de exercerem seu controle sobre o corpo e a alma dela.
Dito isso, valem a pena algumas reflexões.
1) Se houver um Deus, ele não morre de vergonha por causa daqueles que tocam a vida da forma que os faz mais felizes. Mas por conta dos que falam de morte matar em sua honra, ignorando toda discussão presente no Novo Testamento.
2) Se Jesus voltasse hoje defendendo a mesma ideia central presente nas escrituras sagradas do cristianismo (e que, por ser tão simples, não é seguida por muitos) e andando ao lado dos mesmos párias com os quais andou, seria humilhado, xingado, surrado, queimado, alfinetado e explodido.
Ele ou ela seria chamada de mendiga e de sem-teto vagabunda, olhada como operária subversiva, alcunhada como agressora da família e dos bons costumes, violentada e estuprada, rechaçada na propaganda eleitoral obrigatória em rádio e TV, difamada nas redes sociais. Levaria porrada daqueles que se sentem os ungidos pelo divino, finalizada como comunista, linchada num poste pela população em nome da fé e das tradições. E, ao final, alguém ainda tiraria uma selfie ao lado de seu corpo morto para postar no Insta.
3) Supostos representantes dos interesses de Deus na Terra afirmam lutar pelo direito de expressarem suas crenças. Bobagem, essa liberdade eles já têm garantida. O que querem é o privilégio de exercerem seu ódio diante daquilo que acham que pode ameaçar o controle sobre o povo.
4) O discurso de ódio transforma a massa em turba e provoca distorções de entendimento sobre as palavras que estão na origem da fé das pessoas. Estudei em uma escola protestante por nove anos e, ao mesmo tempo, participei ativamente da vida na igreja católica perto de casa. Por conta do meu passado, sei razoavelmente bem o que está escrito nos evangelhos. E o discurso de intolerância que grassa na boca de muita gente não está nos quatro livros do Evangelho cristão.
5) A liberdade de expressão não é um direito absoluto, pois não há direitos absolutos. Nem o direito à vida é, caso contrário, não existia a absolvição por legítima defesa. Ela é limitada por outros direitos, como o direito à vida e a uma existência sem medo de morrer. Se uma sociedade tolerante aceita a intolerância como parte da liberdade de expressão ela pode vir a ser destruída pelos intolerantes. Como analisou o filósofo Karl Popper, a liberdade irrestrita leva ao fim da liberdade da mesma forma que a tolerância irrestrita pode levar ao fim da tolerância.
6) Líderes religiosos, políticos e sociais dizem não incitar a violência. Por vezes, não são eles que atacam, mas é o encadeamento de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna a agressão banal. Ou, melhor dizendo, "necessária'' - para tirar o mundo do caos e levá-lo à ordem. Acabam por alimentar a intolerância, que depois será consumida por fãs malucos e seguidores inconsequentes que fazem o serviço sujo, quase em uma missão divina. E temos mortos para provar.
7) Dizer que todo cristão tem o dever de colocar em prática tudo o que está escrito na Bíblia, não raro, cai no pecado da seletividade. Pois se é para seguir à risca as sagradas escrituras, então também temos que fechar os bancos ("Não lhe darás teu dinheiro com usura, nem darás do teu alimento por interesse", Levítico 25:37); não comer camarão e polvo ("De todos os animais que há nas águas, comereis os seguintes: todo o que tem barbatanas e escamas, nas águas, nos mares e nos rios, esses comereis. Mas todo o que não tem barbatanas, nem escamas, nos mares e nos rios, todo o réptil das águas, e todo o ser vivente que há nas águas, estes serão para vós abominação", Levítico 11:09 e 10).
8) Se por um lado, as lideranças fazem o que fazem de forma criminosa e consciente para manter os fiéis com medo e, por isso, merecem ser punidos, prefiro acreditar que há uma maioria entorpecida por essas palavras carregadas de veneno que não acredita nisso. A quase totalidade dos evangélicos quer paz como a quase totalidade de quaisquer outros membros de outras religiões.
Por isso, a passagem mais legal dos Evangelhos segue segundo na minha opinião, o livro de Lucas, capítulo 23, versículo 34: "Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem".
9) Por isso, gosto de repetir os ensinamentos do sábio de barba que dizia que, no final das contas, será muito difícil salvar quem se apega à riqueza ignorando os mais pobres. Alguém que explicavam que não importa o quanto você tem, mas quem você é.
"Comunista! Volta pra Cuba, safado! Você nunca iria entrar na Terra Prometida, defensor de bandido! Deve ser coisa de Marx, ou seja, do capeta."
Na verdade, é coisa de um tal de Jesus de Nazaré (Lucas 18:18-30; Mateus 19:21; Mateus 6: 19-21).