Com padre, tenente e advogado, só faltou o papagaio no golpe de Bolsonaro
No Brasil do quase-golpe, as piadas foram atualizadas para começarem com "um padre, um advogado e um militar entraram no Palácio do Planalto com uma minuta de golpe para entregar a um político..." Só faltou o papagaio. Ou não.
Em sua delação premiada, o gerente da lojinha de joias de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro Cid, afirmou que um advogado constitucionalista, um padre e o assessor especial Filipe Martins apresentaram a Jair uma minuta de decreto golpista. A informação foi revelada em reportagem de Aguirre Talento, no UOL, nesta quinta (21).
Sim, o que vivemos não foi apenas uma crise ética, mas também estética. Pois a transformação da sede do Poder Executivo em um simulacro mal-ajambrado de Sucupira, cidade da novela O Bem-Amado, coloca Jair Bolsonaro como intérprete da versão real do populista de direita acusado de corrupção Odorico Paraguaçu, um papel que já foi do saudoso Paulo Gracindo.
A questão é de qual minuta de golpe estamos falando. A Polícia Federal investiga se ela é a mesma que foi encontrada em uma operação na residência do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres - que ficou quatro meses preso neste ano em meio às investigações sobre sua omissão diante dos atos golpistas de 8 de janeiro como secretário de Segurança Pública do Distrito Federal. Os dois textos falam de prisões de adversários.
O ex-ministro tratou o documento, que previa intervenção dos militares no TSE para anular eleições, como uma bobagem que lhe foi entregue e ele esqueceu de jogar no lixo. A questão é que o texto ganhou sentido quando visto como segunda etapa da decretação de uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) prevista na primeira minuta do celular de Cid.
Essa minuta acabou sendo citada pelo ministro Benedito Gonçalves, relator da ação no Tribunal Superior Eleitoral, que levou à inelegibilidade de Bolsonaro. Confirmada que a minuta foi a mesma de Torres, ficará mais claro por que bolsonaristas se esgoelaram em praça pública para atacar o documento.
Relembrar é viver: o ex-presidente foi julgado por fazer uma micareta golpista no Palácio do Alvorada a fim de contar mentiras sobre a urna eletrônica para embaixadores estrangeiros, em uma espécie de ato de campanha eleitoral que usou, ilegalmente, a estrutrura do Estado e, portanto, dinheiro público. Na ação contra ele, a denúncia apresentou que a reunião com embaixadores disseminou desordem informacional sobre as urnas como estratégia para inflamar o eleitorado e incitar descrédito no resultado. Isso teria ocorrido como parte de um plano de caráter golpista por parte de Bolsonaro.
A minuta encontrada na casa de Anderson Torres foi acrescentada ao processo sob a justificativa de que ela mostrava aonde essa movimentação toda foi parar.
A lei permite ao juiz conhecer fatos ocorridos ou revelados depois de a ação ser proposta. O TSE havia decidido que não se pode usar essa norma para criar uma ação nova dentro de uma que já existe, mas apenas para trazer fatos relacionados com a "causa de pedir" - o conjunto de fatos expostos na demanda e instrumentalizados na petição inicial.
Além dessa, a Polícia Federal encontrou outra minuta golpista e estudos para apoiar um golpe de Estado no celular do tenente-coronel Mauro Cid.
Esse documento permitiria ao seu antigo chefe convocar as Forças Armadas em caso de perturbação de caos. Caos que poderia surgir, por exemplo, com a detonação de uma bomba em um caminhão-tanque que explodisse o Aeroporto de Brasília, matando centenas de pessoas - como a frustrada tentativa terrorista de 24 de dezembro do ano passado.
Essa minuta estava em mensagens trocadas entre Cid e o sargento Luís Marcos dos Reis - ambos presos na operação que investiga a fraude nos registros de vacinação de Bolsonaro. Também foram encontradas propostas sobre como convencer a cúpula do Exército a entrar na empreitada.
Parece piada que duas minutas de golpe circularam entre a alta cúpula do governo Jair Bolsonaro e que uma delas (ou uma terceira) foi levada a ele por um advogado, um padre, um militar e um assessor que ficará lembrado pela acusação de fazer gestos relacionados a supremacistas brancos no Senado Federal.
Parece piada, mas não é. E se fossem um pouco menos toscos, a democracia teria sucumbido.