Duas pessoas morrem no frio de SP e o problema da cidade é o padre Júlio?
Duas pessoas foram encontradas mortas na região central da capital paulista: uma no Largo da Concórdia, no Brás, outra na rua Sebastião Pereira, na Santa Cecília, nesta sexta (31). A suspeita é que tenham morrido de especulação imobiliária, quer dizer, de hipotermia.
Quando o frio exterior é muito forte, o hipotálamo no nosso cérebro perde a capacidade de manter nossa temperatura - que, normalmente, permanece na casa dos 37° Celsius. As reações químicas relacionadas à manutenção da vida precisam de calor. Sem ele, músculos vão parando, a respiração e a circulação sanguínea diminuem, a sensibilidade some com o freio do sistema nervoso. A consciência vai se dissolvendo. Tudo até o coração parar de bater.
Essas reações químicas que matam se repetem todos os anos em cidades como São Paulo. Na semana que passou, chegamos a 10 graus Celsius.
Já fiz essa reflexão aqui, mas acho que é pertinente trazê-la de volta. Nós, paulistanos, gostamos de imaginar que somos um povo acolhedor dada a profusão de sotaques, cores e origens que fazem parte de nossa formação. Mas, nessa cidade acolhedora, é possível morrer de frio e o cadáver permanecer sem ninguém se curvar para verificar se aquele amontoado de pano passa bem. Se precisa de algo. Ou se ainda respira.
Não é que a cidade respeite tanto a individualidade de cada um a ponto de não interferir em seu espaço pessoal. Ela só enxerga a parte mais vulnerável da população quando esta agride, com sua existência, o senso estético de um conceito equivocado de cidade. O que não é de hoje. São Paulo, como toda grande cidade do continente americano, recebeu os mais pobres que vieram construi-la com os braços abertos - chicote em uma mão e leis injustas na outra.
As coisas melhoraram com o tempo, mas o respeito à dignidade e, dentro dele, o direito à moradia ou à assistência social vão avançando muito lentamente. Graças a pessoas como o padre Júlio Lancelotti e a Pastoral do Povo de Rua, os necessários movimentos por moradia e os servidores públicos que, na contramão de muitos políticos, fazem seu dever.
A Secretaria Municipal de Assistência Social de São Paulo tem avançado em políticas de aluguel de hotéis e pensões, construções de casas de passagem para acolher quem nada tem e atendimento emergencial, mas isso, como ele mesmos sabem, está longe de resolver a questão. Faltam recursos para atendimento decente e suficiente para pessoas em situação de rua e uma política de moradia que privilegie os seres humanos e não os ratos e baratas dos prédios fechados pela especulação imobiliária.
Toda vez que a porta do freezer abre em São Paulo, quem ainda não morreu por dentro se lembra da quantidade de imóveis fechados enquanto há pessoas morrendo do lado de fora. Ou da gente que dorme em barracos, cortiços e habitações precárias que convidam o frio a entrar todas as noites.
O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se imóveis trancados por portas de tijolos e terrenos vazios pudessem ser desapropriados pelo poder público e destinados a quem precisa - gratuitamente, na forma de aluguel social ou a juros abaixo do mercado, dependendo das necessidades e do nível de pobreza.
Mas quando se discute a necessidade de radicalizar os programas de moradia popular, aparece aquela frase: "Tá com dó? Leva pra casa!"
A frase é um clássico da internet. Proferida ad nauseam quando o tema é a vida enfrentada pela gente pobre, abandonada, drogada e prostituída que atrapalha a imagem que São Paulo tem de si mesmo. Ignoram que não é levar o povo para a casa, mas fazer com que União, Estado e município cumpra sua função de garantir o mínimo de dignidade a quem não pode pagar por uma.
Um esqueleto de prédio, construção parada há anos, foi ocupada recentemente no meu bairro por famílias de uma entidade de luta por moradia. Moradores de classe média alta ficaram em pânico em listas de WhastApp. Uns porque isso iria "desvalorizar" a região, outros porque a chegada de pobres traria "criminalidade". Mais do que apenas o capitalismo, a humanidade, por vezes, é um experimento que deu errado.
Muitos de vocês não devem ter ouvido sobre as mortes de pessoas em situação de rua anteontem, mas certamente esbarraram com xingamentos e ataques contra o padre Júlio.
Sim, gastamos mais tempo em atacar quem dedica sua vida a um problema do que investimos na solução deste problema. Faz sentido para uma sociedade que se orgulha de sua tolerância com as vidas que acredita não valerem nada contanto que elas não atrapalhem esteticamente a vista. E não façam barulho ao morrerem.