Trump leva ressentimento e ódio às urnas, Kamala traz medo e desconfiança
Donald Trump foi muito competente em explorar dois sentimentos negativos do eleitorado. Kamala Harris, outros dois.
Primeiro, Trump surfou no ressentimento — da perda de empregos e de poder de compra em regiões que, antes, forjaram o crescimento dos Estados Unidos e estão, até hoje, esperando para colher os prometidos frutos da globalização. Aqui conhecemos esse sentimento pela falácia do bolo que, quando crescido, será compartilhado.
Depois, o ódio a imigrantes, usando-os como resposta simples e rasa a todos os problemas, como o desemprego, a violência urbana e até o colapso do "sonho americano". Mas também ódio a liberais, e suas tentativas de impedir o acesso à autodefesa e sua promiscuidade, e à imprensa — que merece apanhar por relatar aquilo que causa constrangimento ao poder.
Há quem vote em Trump pelo ódio presente em suas declarações fascistas, racistas e xenófobas e quer que ele coloque em marcha a deportação em massa que prometeu. Contudo, a maioria dos que nele votam é por acreditar que tomará medidas a fim de garantir que regiões empobrecidas enriqueçam. De ações protecionistas contra produtos estrangeiros até a remoção de regulações ambientais que travam exploração de gás e carvão.
O que ele não diz é que, se colocar suas promessas em prática, a inflação nos Estados Unidos volta a subir. Cinicamente, ataca a gestão de Joe Biden e Kamala Harris pelo alto patamar dos preços e a dificuldade de comprar a casa própria ou pagar o aluguel, como se ele não tivesse responsabilidade por isso pelas decisões que tomou durante a pandemia.
Ao mesmo tempo, Kamala Harris promoveu o medo de a democracia norte-americana ir para o vinagre para que o eleitorado levantasse a bunda da cadeira, nesta terça (5), e fosse votar nela. Ou melhor, contra o outro.
Durante a campanha, ela alertou para o risco que o ex-presidente representa tomando como referência o ataque golpista de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio, o retrocesso no direito ao aborto (dificultado pela Suprema Corte de maioria trumpista) e a erosão dos direitos civis — como a ameaça de Trump de usar as Forças Armadas contra cidadãos norte-americanos.
Uma parte do eleitorado vota na candidata não porque concorda com sua plataforma de governo, mas porque, do outro lado, desenha-se o rascunho do fim do mundo.
Por exemplo, jovens progressistas e parte dos muçulmanos estão irritados com o fato de Biden ter dado as bombas com as quais Benjamin Netanyahu vem aplicando seu genocídio em Gaza, mas sabem que com Trump pode ser ainda pior. Ou parte das famílias de negros e latinos que estão insatisfeitos com promessas não cumpridas dos democratas, mas temem que o racismo de Trump não seja apenas retórica de campanha.
Uma parte também vota em Kamala porque lembra que Trump fez uma política para ricos, não para os operários e classe trabalhadora. O que não significa que estejam satisfeitos com Biden. Pelo contrário, não são poucos os desconfiam que nada vai mudar com a vitória dela.
Como escrevi aqui ontem, os Estados Unidos vivem quase uma situação de pleno emprego, com taxa de desocupação de 4,1%, os salários crescem a 3,9% no ano, a renda disponível per capita aumenta todos os meses há mais de dois anos e o Produto Interno Bruto cresceu 2,8% no último trimestre. Mas a força de um governo não depende apenas de indicadores econômicos, pois o povo não come PIB. O poder de compra é o ponto.
Apesar de terem estabilizado após as altas causadas pela pandemia, os preços nos EUA seguem em um patamar alto. Há emprego e ganha-se mais, a percepção, contudo, é que cabe menos qualidade de vida no salário. E Trump conseguiu fomentar a culpa de Biden e Kamala por isso.
Uma vitória da candidata democrata não liquida com o trumpismo — o que teria, talvez acontecido, com uma condenação e prisão do ex-presidente por tentativa de golpe de Estado antes das eleições. Ele estará com idade muito avançada para tentar novamente se perder, mas seu legado continuará na figura de outros extremistas.
Mas uma vitória do republicano pode chancelar a ascensão nos Estados Unidos de um populismo de extrema direita, com o apoio de parte da classe trabalhadora, mas também de uma parte de negros e de latinos, que antes estavam em sua grande maioria com os democratas, mas estão ressentidos e com ódio.
Isso representará a refundação do Partido Republicano, mas também forçará uma mudança no Partido Democrata - que verá parte de sua base tradicional sequestrada. De qualquer forma, os EUA nunca mais serão os mesmos.
Newsletter
OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberNo final do dia, o futuro também depende de outra eleição que segue em paralelo e da qual poucos falam. O Senado terá um terço de seus assentos renovados. E a Câmara todas as suas cadeiras em disputa.
Porque se Trump vencer e não tiver maioria na Câmara e/ou no Senado, vai ser mais difícil passar o seu rolo compressor e o Apocalipse da Democracia dos EUA pode ser adiado.