Como sobreviver às fake news e ao ódio de parentes na ceia de Natal
Defendo que, diante de discursos violentos na ceia e no almoço de Natal, devemos responder de forma calma e acolhedora, abrindo o diálogo, buscando explorar o que nos aproxima e não insistindo no que nos separa, apresentando fatos que mostram que vacinas funcionam, que a Terra não é plana e que Karl Marx não é um dirigente petista. Sirva arroz com ou sem uva passa, mas não se esqueça de ter paciência na noite de 24 ou no almoço de 25.
Já publiquei essas recomendações por aqui, mas o solstício de verão autoriza a republicação atualizada.
Sei que, em algumas famílias, há aquele tiozão que tempera o rega-bofe com perdigotos enquanto sugere "exterminar mendigos", "trancafiar drogados", "proibir gays de se beijarem em público", "resolver tudo na bala", "demitir professores comunistas" e que "defende que bandido negro bom é bandido negro morto" — até porque, se for branco, é diferente. Ou seja, atropela no semáforo o menino Jesus que pede esmola enquanto canta Glória a Deus nas Alturas.
Este é o momento do ano em que o Evangelho de Mateus, capítulo 22, versículo 39 ("Ame o próximo como a ti mesmo") se cansa e dá lugar ao Evangelho de Lucas, capítulo 23, versículo 34 ("Pai, perdoai, eles não sabem o que fazem").
Se o pessoal lesse direito, entenderia que a mensagem-base do cristianismo é de amor e tolerância. Contudo, como não canso de repetir: falta amor no mundo, mas também falta interpretação de texto.
A melhor sugestão para os dias 24 e 25 de dezembro teria sido tatear o terreno com antecedência. Muitas famílias têm grupos de zap que são ótimos termômetros do (mau) humor coletivo. Outra alternativa é perguntar aos avós (eles sempre sabem das coisas) se o nível da tensão familiar está tranquilo ou se a nova prisão do Daniel "Surra de Gato Morto" Silveira pelo ministro Alexandre de Moraes azedou a maionese.
Se diante da sondagem lhe vier à mente a filosofia de Carga Pesada ("É uma cilada, Bino!"), prepare-se.
Se cilada houver, invente uma viagem. Invente uma doença. Invente um plantão - ou não invente, apenas aceite o plantão, pois é muito mais legal folgar no Ano Novo do que no Natal. Invente um jantar na casa da família da namorada ou do namorado. E, para isso, invente a namorada ou o namorado que talvez você não tenha. Se o casal tiver o mesmo problema, pode dar a mesma desculpa e ir comer um pernil no bar Estadão, que fica aberto inclusive na noite de Natal (juro que não ganhei nada pelo merchand).
Outra alternativa é permanecer calado na ceia ou no almoço de Natal. Não faça nenhum comentário mesmo diante das maiores aberrações. No final, abrace forte o tio ou cunhado em questão, no mais completo silêncio, por um tempo diretamente proporcional à quantidade de sandices que ele disse. Dê um beijo no rosto dele e vá assistir os quatro filmes da saga de John Wick no streaming.
Ou concorde com eles e vá além. Diga que é necessário rever o direito ao voto das mulheres e a Lei Áurea. Peça uma invasão de mariners dos Estados Unidos. Avise que tem que prender todos os corruptos, inclusive os vagabundos que sonegam impostos. Afirme ser necessária uma bomba atômica para destruir o Brasil, matando ricos e pobres, a fim de recomeçarmos do zero porque somos um experimento que deu errado. Se disserem que você está exagerando e te chamarem de radical, olhe bem nos olhos de cada um e diga que são fracos. Ah, isso só funciona se você não rir.
Nenhuma alternativa é perfeita e o caminho a escolher depende da quantidade de amor que você tiver para gastar — lembrando, é claro, que essa commodity anda em falta no mercado. Desconfio que é por isso que as pessoas ficam tão pilhadas em garantir presentes. Amor de verdade é gratuito e dinheiro não compra.
Não sou um homem de fé, mas na noite de hoje abraço Lucas 2:14, pedindo paz na Terra. Se ela não é possível na terra onde nasceu o aniversariante do dia, devido ao genocídio em curso, que ela seja, ao menos, na mesa da sua casa ou dentro de cada um. Feliz Natal.