Mulheres na política: as vices e as brechas na legislação
Danusa Marques e Flávia Biroli*
Nestas eleições, alcançamos o percentual mais alto de candidaturas femininas às Câmaras de Vereadores. São 34,6% de mulheres - um percentual, é bom lembrar, ainda aquém da paridade.
O aumento em relação às eleições anteriores pode ser um reflexo dos incrementos na legislação de cotas. Desde 1997, ela prevê a reserva de no mínimo 30% das candidaturas nas listas eleitorais de partidos e coligações para um dos sexos. A partir de 2009, quando a lei foi alterada e, em vez de reserva, passou a explicitamente determinar o preenchimento dessas candidaturas, ações para penalizar partidos que não cumprissem a lei passaram a ser mais frequentes.
O cenário seria mais disputado depois de 2018, quando o preenchimento passou a ser acompanhado de dinheiro e tempo de propaganda. A Resolução nº 23.575/2018 do TSE confirmou decisão da mesma corte que asseguraria, já para as eleições de 2018, ao menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo do Horário de Propaganda Eleitoral Gratuita no rádio e na TV. Naquele ano, isso permitiu um aumento significativo no percentual de eleitas para a Câmara dos Deputados e as Assembleias Legislativas.
Este é o primeiro pleito municipal ao qual essa resolução se aplica e ainda não sabemos quais serão seus efeitos nos resultados das eleições.
Farol amarelo: o que as eleições anteriores nos ensinaram?
Um alerta importante dado pelas eleições anteriores é a necessidade de acompanhar a aplicação dos recursos pelos partidos e verificar se está de acordo com a lei. As denúncias de candidaturas laranjas nas eleições de 2018 mostraram caminhos do desvio.
Como mostrou Teresa Sacchet, menos da metade dos partidos cumpriu a exigência de distribuição de 30% dos recursos financeiros declarado para candidaturas de mulheres. Quatro deles destinaram menos de 20%: PP (18%), PRTB (17%), PSD (16%) e Solidariedade (15%). Estamos, nesse caso, no domínio do descumprimento da lei, em que sanções como a cassação de toda a lista podem ser aplicadas. Alguns desses casos de desvios ilegais de recursos do Fundo Eleitoral em 2020 já estão sendo monitorados.
Mas há formas mais matizadas de se driblar a legislação, que não são abertamente ilegais, mas sabotam sua finalidade, que é permitir condições mais igualitárias de disputa para as mulheres, reduzindo as assimetrias de gênero.
Em 2018, os recursos foram distribuídos de maneira bastante desigual entre as candidatas, na maioria dos partidos, como também mostrou Sacchet.
Como não houve impedimento legal de destinar recursos do Fundo Eleitoral para candidaturas a cargos majoritários - aos quais as cotas não se aplicam - aumentou o número de candidatas ao cargo de vice-presidente e vice-governador. As mulheres, que haviam sido 25,7% das candidatas a vice-governadoras em 2014, passaram a ser 35,7% em 2018. O percentual de candidaturas à cabeça da chapa (governador, no caso) cresceu bem menos: foi de 11,4% em 2014, para 14,9% em 2018.
Aumenta o número de vice-prefeitas nas candidaturas em 2020
O mesmo movimento pode ser percebido agora, nas eleições municipais de 2020, como se vê abaixo:
Nossa hipótese é que o aumento das candidaturas ao cargo de vice-prefeita tem tudo a ver com as cotas - ou melhor, com as brechas na regulamentação da legislação de cotas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
E não apenas na resolução de 2018, já mencionada. A Resolução 23.607 de 2019, também do TSE, teria como objetivo garantir a aplicação da lei, mas reproduziu as saídas não-reguladas para que os partidos apliquem o mínimo de 30% de recursos de modo que seria, na realidade, vantajoso para candidaturas masculinas.
O inciso §4 do Art. 17 dessa resolução afirma que "Os partidos políticos devem destinar no mínimo 30% (trinta por cento) do montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para aplicação nas campanhas de suas candidatas". Nada diz sobre o fato de que as cotas foram criadas em 1995 e incrementadas por decisões posteriores para fomentar um crescimento da presença das mulheres nas Casas Legislativas, eleitas por sistemas proporcionais.
O inciso §7 da Resolução afirma que despesas comuns com candidatos do gênero masculino, assim como despesas consideradas coletivas pelo partido, são permitidas, desde que haja benefício para as candidatas. É aqui que qualquer despesa coletiva que inclua minimamente mulheres candidatas é permitida; que qualquer dobradinha com candidatos homens é entendida como regular; que qualquer gasto de campanha de uma chapa que tenha uma mulher como vice de um homem que se candidata a prefeito não está sendo entendida como irregular. Basta pensar nos santinhos com fotos de candidatos e candidatas, nos investimentos em candidaturas de prefeitos que têm mulheres como suas vices.
Assim, dadas as lições que 2018 nos legou e o acúmulo de análises sobre os obstáculos à participação feminina nas disputas eleitorais, o crescimento entre as candidatas a vice-prefeita demanda atenção.
Sabe-se que as mulheres encontram obstáculos maiores para candidatar-se a cargos executivos do que a cargos proporcionais, daí o aumento não ter acontecido para prefeito, mas no papel secundário de vice em chapas liderada por homens. É um cenário que claramente se desvia do objetivo de uma ação afirmativa para eleger mais mulheres.
O objetivo é eleger, e não só registrar candidaturas
Para se ter uma ideia do que está em jogo, desde a aprovação inicial da lei de cotas, foram dezenove anos para se chegar ao patamar mínimo de candidaturas estabelecido por lei, o que se deu apenas em 2014. A Justiça Eleitoral levaria 22 anos para, em 2018, regulamentar que o preenchimento de vagas deve corresponder aos recursos financeiros e organizativos, porque o objetivo último dessa ação afirmativa é eleger mais mulheres e não simplesmente registrar candidatas.
A Justiça Eleitoral tem sido provocada a se posicionar , ao longo desse tempo, para assegurar a efetividade das diversas candidaturas em um regime de concorrência eleitoral. O abismo entre candidaturas competitivas e as demais é marcado pelo gênero e pela raça. Isso afeta o coração dos sistemas políticos eleitorais, já que sua legitimidade reside na competição eleitoral. Se não há condições minimamente igualitárias para concorrer e práticas de violência econômica (entre outras) afetam seletivamente as candidatas, não há de fato competição.
As brechas de que tratamos aqui são, assim, rachaduras na legitimidade do sistema eleitoral e da própria democracia. Daí a necessidade urgente de que a Justiça Eleitoral atue firmemente, por meio de regulação e de ações que façam valer a finalidade da lei e garantam que elas sejam cumpridas pelos partidos.
*Danusa Marques é professora adjunta do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, possui graduação (2005) e mestrado (2007) em Ciência Política pela Universidade de Brasília - UnB. É doutora em Ciência Política (2012) pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Realiza pesquisas na área de gênero, carreiras e elites políticas e faz parte do Comitê Executivo da Rede de Pesquisas em Feminismos e Política. Atualmente é vice-diretora do Instituto de Ciência Política da UnB.
Flávia Biroli é doutora em História pela Unicamp (2003). É professora do Instituto de Ciência Política da UnB, pesquisadora do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2018-20). É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018) e Gênero, neoconservadorismo e democracia (com Maria das Dores C. Machado e Juan Vaggione, Boitempo, 2020).
Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2020, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br
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