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Observatório das Eleições

Diversidade e financiamento: os fundos públicos e a democracia

Erika Hilton (PSOL), codeputada da Bancada Ativista e agora vereadora eleita em 2020 - Arquivo Pessoal
Erika Hilton (PSOL), codeputada da Bancada Ativista e agora vereadora eleita em 2020 Imagem: Arquivo Pessoal

17/11/2020 11h52

* Flávia Biroli, Rachel Callai Bragatto e Luiza Jardim

As eleições municipais de 2020 tiveram recorde na proporção de candidatas mulheres e de candidaturas negras. Além disso, o pleito foi marcado pelas regras de distribuição dos recursos a estes dois grupos com histórico de sub-representação política. Isso pode estar relacionado ao recorde de vereadoras eleitas em São Paulo e mulheres trans nas capitais. E, em todos esses casos, o recurso público teve papel fundamental.

Nas democracias eleitorais, as disputas não são necessariamente equilibradas. Isso faz com que os espaços de representação possam estar muito longe da diversidade que compõe a sociedade. Uma das razões para que seja assim é que não basta candidatar-se. Visibilidade, recursos e redes de apoio costumam ser fundamentais.

Desigualdades e discriminações históricas têm feito da política um horizonte distante para alguns grupos sociais. As eleições municipais de 2020 mostraram que há candidatas e, claro, eleitoras e eleitores, dispostos a modificar isso. E algumas candidaturas simbolizam fortemente essa disposição.

Observamos que os fundos públicos para as campanhas têm um papel na promoção da diversidade nas Câmaras de vereadores das capitais. O Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC) e o Fundo Partidário foram os principais financiadores de campanhas como a de Erika Hilton (PSOL) em São Paulo, mulher trans preta, e a da Professora Duda Salabert (PDT) em Belo Horizonte, mulher trans que obteve o maior número de votos do município, e a de Carol Dartora (PT), primeira mulher negra eleita para a Câmara Municipal de Curitiba.

Neste ano, pela primeira vez nas eleições locais, estavam em vigor regras que exigiam aos partidos o repasse de um mínimo de 30% para candidaturas de mulheres e o repasse a candidaturas negras proporcional ao número de candidatos inscritos, como já debatemos neste Observatório.

Até agora (dois dias após as eleições), os dados da plataforma 72horas indicam que apenas 26.7% dos recursos foram repassados para mulheres e 36.6% para pretos e pardos Os dados agregados de financiamento estão aquém do que é exigido por lei. Mesmo assim, fizeram diferença para a eleição de candidaturas que simbolizam a diversidade e, nas palavras de Erika Hilton, a reação ao fascismo.

São Paulo e a eleição de duas pessoas trans

Em 2020, a maior cidade da América Latina e do país que em 2019 liderou o ranking mundial de transfobia, elegeu duas pessoas trans para compor a sua Câmara dos Vereadores, que totaliza 55 cadeiras. São Erika Hilton (PSOL), mulher preta, e Thammy Miranda (PL), homem branco.

Erika Hilton fez 50.508 votos e foi a mulher mais votada de São Paulo. O total de recursos recebidos em sua campanha foi R$87.225,34, sendo 71.6% do Fundo Partidário e o restante de outros recursos.

Thammy Miranda fez 43.321 votos, com 100% de recursos públicos, que totalizaram R$184.380,00. Destes, 94.4% foram do FEFC e 5.6% foram do Fundo Partidário.

A Câmara Municipal de São Paulo terá 13 vereadoras, o maior número de sua história. O percentual de 23.6% está muito aquém da paridade, mas o aumento indica que as regras que determinam um mínimo de repasse às mulheres tiveram um efeito positivo.

A candidatura mais votada em Belo Horizonte é de uma mulher trans

Professora Duda Salabert (PDT) obteve 37.613 votos, e foi a pessoa mais votada em Belo Horizonte. No site do TSE ainda não constam gastos de campanha nem recursos recebidos.

Em Belo Horizonte, o número de mulheres eleitas aumentou, como no caso de São Paulo, chegando ao marco histórico de 11 mulheres eleitas, 26.8% do total de vereadores.

Iza Lourença (PSOL) e Macaé Evaristo (PT), ambas mulheres negras, foram financiadas majoritariamente pelos fundos públicos. Iza Lourença foi eleita com 7.771 votos, com um total recebido de R$99.585,12, dos quais 61.6% são do FEFC. Macaé Evaristo foi eleita com 5.985 votos e R$79.603,25, sendo 78.8% do FEFC.

Entre as mulheres brancas mais votadas, a realidade foi outra. Nesse caso os recursos privados superaram os partidários. Professora Marli (PP) teve 14.469 votos, e só 37.5% dos seus recursos foram do FEFC, de um total de R$80.000,00 arrecadados na campanha. Marcela Trópia, eleita com 10.741 votos(Partido Novo) arrecadou R$185.356,24, mostrando que para algumas candidatas e partidos pode ser mais fácil levantar a bandeira de que não aceitam fundos públicos de campanha

Curitiba elege uma mulher negra pela primeira vez

Em Curitiba, capital do Paraná, uma mulher negra foi eleita pela primeira vez para a Câmara dos Deputados. Ela foi a terceira mais votada, em um momento em que Curitiba foi uma das nove capitais que ultrapassaram o patamar de 20% de candidatas mulheres. Mais uma vez um marco histórico que indica que a decisão de 2018 que determinou que os partidos devem repassar no mínimo 30% dos recursos às mulheres teve um efeito democratizante.

Carol Dartora (PT) elegeu-se com 8.874 votos e teve um total de recursos recebidos de R$45.424,00, dos quais 65.3% foram do FEFC.

Já Indiara Barbosa (NOVO), a mais votada, contou com quase 190 mil reais, mais de quatro vezes o valor de Dartora. Nesse caso, do total recebido, cerca de 77% foram doações de pessoas físicas, 5% do partido (R$ 9.485, 24) e 16% de financiamento coletivo. Analisando as doações de pessoas físicas, maior fonte de recursos da candidata, das 28 recebidas, apenas duas são de mulheres.

O segundo mais votado, Serginho do Posto (DEM), é um vereador em seu quarto mandato. Homem branco, fez sua campanha com R$ 41.500 declarados, sendo cerca de 60% de doações de pessoas físicas e o restante de recursos próprios.

Diversidade

A democracia eleitoral pressupõe algum equilíbrio nas disputas. Os fundos públicos de campanha, a proibição do financiamento empresarial e os limites ao financiamento de pessoa física têm como objetivo reduzir o impacto do dinheiro nas eleições. Sabemos que há muitas brechas e que o poder econômico, combinado às desigualdades raciais e de gênero, permanece como um fator determinante. Temos, no entanto, indicações importantes de que sem o financiamento público a política seria mais homogênea, menos diversa.

Nota: as informações sobre os repasses totais foram retiradas da plataforma Observatório 72 Horas no dia 17 de outubro de 2020, às 10h. A plataforma está com a última atualização feita às 02h11min também do dia 17. Os dados de distribuição de recursos dos candidatos foram retirados do TSE.

* Flávia Biroli é doutora em História pela Unicamp (2003). É professora do Instituto de Ciência Política da UnB, pesquisadora do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2018-20). É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018) e Gênero, neoconservadorismo e democracia (com Maria das Dores C. Machado e Juan Vaggione, Boitempo, 2020).
Rachel Callai Bragatto é jornalista, mestre e doutora em Sociologia pela UFPR. Foi visiting researcher na University of California - Los Angeles. Pesquisadora em estágio pós-doutoral no INCT/IDDC. Interessada em temas como democracia digital, participação política e cibercultura. Faz parte dos coletivos Intervozes e Soylocoporti.
Luiza Jardim é graduada em Administração Pública com minor em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP) e mestranda em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisa participação social, democracia digital e política, é educadora política e integra o INCT/IDDC.

Esse texto foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições de 2020, que conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras e busca contribuir com o debate público por meio de análises e divulgação de dados. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br