Regina: O dia em que Branca, de "O Santo Inquérito", deu um tapa na pantera
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Chega a ser constrangedor, até um pouco doloroso, escrever o texto que vou escrever. Fazer o quê? A atriz Regina Duarte tomou posse como secretária de Cultura do governo Bolsonaro, depois do "longo noivado". Como se diz em processo penal, sei que ela o fez "por decisão consciente e livre", o que não me impede de sentir um pouco de pena.
Brasília assistiu a um dos discursos de posse mais aloprados da história. Pior: Regina plagiou Branca Dias, personagem de "O Santo Inquérito", vivida por ela mesma no teatro. Nas melhores novelas de Dias Gomes, que escreveu a peça, o fantasma do próprio autor voltaria para assombrar a agora secretária pela apropriação indébita.
Fingindo que o presidente Jair Bolsonaro, seu chefe, é um exemplo de tolerância e apreço pela diversidade, Regina mandou brasa:
"Eu falo de cultura como libertação, falo dessa argamassa de hábitos, de comportamentos, rituais, costumes que se autogeram, se autofertilizam no seio do povo. Falo desse caldo de cantos, danças, brincadeiras de roda, papagaio, pipa no céu, palavrão, tatuagem, arroz com feijão, farofa de mandioca, pastel de feira, pão de queijo, caipirinha de maracujá, chimarrão, culto, missa das dez, desafio repentista, forró, e aquele pum produzido com talco espirrando do traseiro do palhaço e fazendo a risadaria feliz da criançada. Cultura é assim, é feita de palhaçada, de música."
Que coisa!
Em 1978, Regina deu vida no teatro à personagem Branca Dias, da peça escrita em 1966. Conta a história de uma jovem no interior na Paraíba que mergulha no lago para salvar um padre jesuíta do afogamento. O religioso fica obcecado por ela e passa a investigar o seu passado. Descobre as raízes judaicas da família e a denuncia ao Santo Ofício. Houve, sim, uma portuguesa de nome Branca Dias, que emigrou para Pernambuco (não Paraíba), sendo vítima da inquisição em Portugal e aqui. O autor faz uma homenagem à figura histórica ao escolher o nome, mas cria uma história original.
Num dos momentos eloquentes do drama, diz Branca:
"O mais importante é que eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me dão prazer. No vento que me fustiga os cabelos, quando ando a cavalo. Na água do rio, que me acaricia o corpo, quando vou me banhar. No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer. Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentado, com muita farofa, desses que fazem a gente chorar de gosto. Pois Deus está em tudo isso. E amar a Deus é amar as coisas que Ele fez para o nosso prazer. (...) Deus deve passar muito mais tempo na minha roça, entre as minhas cabras e o canavial batido pelo sol e pelo vento, do que nos corredores sombrios do Colégio dos Jesuítas. Deus deve estar onde há mais claridade, penso eu. E deve gostar de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e gozando essa liberdade, porque foi assim que nasceram e assim devem viver."
Onde Branca via Deus — "carne seca bem apimentada" —, Regina diz ver a cultura ("farofa de mandioca") e tenta vender essa concepção, vá lá, arejada a um governo sombrio, que incentiva motins de policiais militares; que promove agitação em quartéis das Forças Armadas; que estimula a homofobia e a misoginia; que incita a invasão de terras indígenas e a agressão ao meio ambiente; que estimula e facilita a posse o uso de armas; que faz da intolerância o seu modo de ser e seu traço distintivo; que incentiva o golpismo e persegue a imprensa independente.
A Branca Dias que pronuncia aquelas palavras já está presa à teia da Santa Inquisição e enfrenta o obscurantismo e a intolerância. A Regina Duarte que faz um pastiche daquele texto decidiu servir a um governo que ridiculariza os direitos humanos e se comporta ele próprio de maneira inquisitorial com aqueles que não rezam segundo a sua cartilha.
É, senhores! Sei lá se existe em algum lugar um áudio com a montagem de 1978 de "O Santo Inquérito". Com 16 anos, eu estava na plateia, eu vi. A entonação que a secretária deu à farofada cultural, culminando com o pum do palhaço, é a mesma que a então jovem e consagrada atriz, com apenas 30 anos, emprestou à fala da personagem de Dias Gomes. Naquele caso, a inflexão estava adequada ao texto. Nesta quarta, sobrou apenas constrangimento. Parecia a Branca depois de ter dado um tapa na pantera...
OS FANÁTICOS
Regina tomou posse em meio à saraivada disparada pelos "bolsolaventos". O próprio guru, com a delicadeza habitual, definiu como "cagada" o apoio que, segundo disse, teria dado à indicação da atriz para o cargo.
Ele e seus fanáticos estão bravos porque alguns adeptos da seita foram demitidos, a exemplo do tal Dante Montovani, que presidia a Funarte. É aquele terraplanista que chama de "terrabolistas" os que "acreditam" (sic) que a Terra é redonda. O rapaz está ainda convicto de que o rock conduz ao abortismo e ao satanismo.
A tropa de Olavo acusa Regina de ser "cavalo de Troia" do esquerdismo. E olhem que, até agora, eles ignoravam o plágio de um trecho da peça do comunista Dias Gomes...
Eu era militante de esquerda em 1978 e bastante ligado a teatro. Víamos com nariz torto a "Regina Duarte das novelas" a encenar uma peça que era, por óbvio, uma metáfora da ditadura militar quando foi escrita, em 1966, e, ainda, na encenação de 1978. A eleição direta para presidente aconteceria longos 11 anos depois. Eu e minha turma fomos assistir à coisa com desconfiança. Lembro de Regina, uma amiga muito severa: "Essa aí nem sabe direito do que está falando". Querem saber? Ela me convenceu no palco. Eu a defendi.
Eis a entonação de Branca Dias a servir a um governo que nega, inclusive, a existência da ditadura. Regina, minha amiga, estava certa. Ela nem sabia do que estava falando.
Não sabe ainda.