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Reinaldo Azevedo

Entenda no detalhe crimes múltiplos cometidos por Bolsonaro neste domingo

A Constituição no lixo e uma versão feita para durar, trazendo os fundamentos do estado de direito. É preciso definir com qual a gente quer ficar - Reprodução
A Constituição no lixo e uma versão feita para durar, trazendo os fundamentos do estado de direito. É preciso definir com qual a gente quer ficar Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

15/03/2020 22h13

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A desenvoltura do presidente Jair Bolsonaro neste domingo era a de um criminoso múltiplo. E em duas frentes: incidiu nos Artigos 6º e 8º da Lei 1.079, que trata dos crimes de responsabilidade e pode conduzir o governante ao impeachment. Ele o fez ao tentar constranger o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário (Artigo 6º) e ao incentivar descumprimento de lei federal (Artigo 8º), concorrendo para espalhar um vírus. Qualquer um pode denunciá-lo à Câmara.

Também cometeu crime comum justamente ao contribuir para espalhar o vírus, com punição prevista no Artigo 268 do Código Penal, e ao transgredir os Artigos 17, 18 e 23 da Lei de Segurança Nacional. Nesse caso, quem tem de apresentar a denúncia ao Supremo é Augusto Aras, procurador-geral da República. Mas ele não tem nem coragem nem independência para fazê-lo. Os brasileiros que se danem.

Detalho.

CRIME DE RESPONSABILIDADE
Há alguém que tenha a cara de pau de negar que, ao incentivar atos que pregam o fechamento do Congresso e do Supremo e defender a decretação de um novo AI-5, o presidente esteja constrangendo o livre exercício dos Poderes Legislativo e Judiciário? Esse crime está previsto no Inciso II do Artigo 85 da Constituição, com disciplinamento nos itens 1 e 5 do Artigo 6º da Lei 1.079. Ali está claro que caracterizam crimes contra o livre exercício daqueles Poderes estas duas atitudes:
1 - tentar dissolver o Congresso Nacional, impedir a reunião ou tentar impedir por qualquer modo o funcionamento de qualquer de suas Câmaras;
5 - opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças.

A Lei 1.079 também trata como crime de responsabilidade contra a segurança interna no país "permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública". Está na Alínea 7 do Artigo 8º. Bolsonaro fez isso? Fez. O Artigo 268 do Código Penal, uma lei federal, trata como crime passível de detenção de um mês a um ano "Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa".

Há advogados contestando que ele o tenha feito. Respondo daqui a pouco, ao tratar propriamente da questão penal. Vamos agora a uma outra dúvida.

Dirá alguém: "Ah, mas Bolsonaro não fez isso, não, Reinaldo" Fez, sim! É que esse "alguém" em questão se esqueceu de ler o que diz o Artigo 2º da Lei 1.079. Eu relembro:
"Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da República ou Ministros de Estado, contra os Ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador Geral da República."

Não quero parecer sentencioso. Não sou formado em direito. Mas entendo de palavras. Direito, e queria saber se há quem conteste, se faz sobretudo de palavra e forma, que dão seu conteúdo.

Mesmo a tentativa de praticar tais crimes constitui... crime de responsabilidade! Quais os sinônimos de "tentar"? Recorra-se ao muito difundido Dicionário Houaiss. Listo alguns:
"empregar meios para conseguir (algo); diligenciar, intentar; esforçar-se por; buscar, procurar; provar; testar; despertar vontade (em alguém) para fazer alguma coisa; instigar, induzir ou seduzir para o mal; atentar; sondar, tentear".

Algum contra-argumento técnico que conteste o óbvio crime — ou crimes — de responsabilidade cometido(s) pelo presidente neste domingo?

Para lembrar: qualquer do povo pode apresentar à Câmara dos Deputados uma denúncia por crime de responsabilidade, com vistas ao impeachment.

AGORA OS CRIMES COMUNS
Um presidente, dispõe o Parágrafo 4º do Artigo 86 da Constituição, "na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções". Para ser cru: se atropelar e matar alguém, mesmo por negligência ou imprudência, só responderá pelo crime depois do fim do mandato -- desde, reitere-se, que ele não guarde nenhuma relação com seu mandato.

Voltemos a este domingo. Tudo o que Bolsonaro fez tem ou não relação com o seu mandato? A resposta, obviamente, é "sim". Então ele pode responder por crimes comuns.

Como já se viu aqui, Bolsonaro atuou de modo a facilitar o espalhamento do novo coronavírus. Aí objetaria o advogado distraído: "Ah, mas não há como provar que houvesse entre aqueles com os quais se misturou pessoas contaminadas". Fato!

Ocorre que o presidente é uma autoridade pública. Há uma diretriz, dada por seu próprio governo, para evitar aglomerações, que foi reiterada depois das patuscadas presidenciais. Mais: houve o anúncio oficial de que o próprio presidente estava em isolamento — o possível no seu caso —, à espera da realização de um novo exame. E assim é porque quatro membros de sua comitiva contraíram a Covid-19, que é a doença causada pelo novo coronavírus.

Ora, ele não precisa assinar um ato de ofício para atestar o isolamento. De resto, a diretriz passada pelo Ministério da Saúde para evitar aglomerações tem, vamos dizer, a fé pública das orientações oficiais. Ademais, e é um fato, o vírus está entre nós, estando já comprovados os casos de contaminação comunitária.

Uma outra pessoa qualquer, sem a autoridade de um chefe de Estado ou de um ministro, poderia escapar da imputação do Artigo 268 do Código Penal. Bolsonaro nunca! O crime está autodemonstrado.

LEI DE SEGURANÇA NACIONAL
Mais: ao endossar aberta e arreganhadamente os atos fascistoides, incide em três artigos da Lei de Segurança Nacional, a saber:
Art. 17 - Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito;
Art. 18 - Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados;
Inciso II do Artigo 23: [estimular a] animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis.

Mais uma vez, o advogado ou jurista distraídos contestarão este rábula: "Ah, então comete crime contra a segurança nacional quem, dotado de liberdade de expressão, defende o fechamento do Congresso e do Supremo pelos militares? Apenas defender isso é um direito!"

Ah, não me tomem por tonto porque não foi isso o que escrevi, ainda que eu adorasse debater se seria esse, de fato, um direito. Mas o ponto é outro. Os manifestantes falem as bobagens que lhes derem na telha. Quando, no entanto, o presidente da República, que é o comandante-em-chefe das Forças Armadas, endossa e estimula atos que têm essa pauta, é evidente que está recorrendo à ameaça para mudar o ordenamento do Estado e para impedir o livre exercício dos Três Poderes. E, por óbvio, essa ameaça só existe porque existe o esforço para criar animosidade entre as Forças Armadas e as instituições civis.

ATENÇÃO! Quem cometeu crime contra a Lei de Segurança Nacional foi o presidente, não os manifestantes.

E agora? O que fazer diante da evidência incontrastável de que o presidente cometeu, sim, crime de responsabilidade e crime comum? Dedicarei um post à questão.