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Reinaldo Azevedo

Fala e WhatsApp de Bolsonaro e Zambelli, e não Moro, impedem Ramagem na PF

Montagem/Reprodução
Imagem: Montagem/Reprodução

Colunista do UOL

29/04/2020 04h59

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Alexandre Ramagem é amigo de Jair Bolsonaro e de seus filhos. Será que isso o impede de ser diretor-geral da PF? Resposta: não! A Lei 9.266, depois de alterada pela 13.047, define em seu Artigo 2º C que a competência para a nomeação é do presidente. Ponto. Nada há sobre ser amigo ou não. Em Brasília, quase todo mundo é amigo de todo mundo. O ponto é outro. Ou melhor: os pontos são outros. Ramagem não pode comandar a PF porque:

1: há uma evidência fática de que Bolsonaro queria substituir o então diretor-geral, Maurício Valeixo, porque descontente com uma investigação da PF que atinge amigos seus. Qual é o fato? A troca de mensagens entre o presidente e o então ministro Sergio Moro;

2: há outra evidência fática de que o nome preferido era justamente Alexandre Ramagem. Trata-se da conversa entre a deputada Carla Zambelli e Moro, em que ela deixa claro que o escolhido pelo presidente será Ramagem. Logo, é ele o nome destinado a fazer o que Valeixo não fazia.

3: há uma terceira evidência fática, esta saída da boca de Bolsonaro. Em seu pronunciamento, ele deixou claro que quer uma Polícia Federal que lhe passe relatórios. Inexiste o item "Relatórios para o presidente" entre as atribuições da corporação. A PF realizou mais de mil operações no ano passado. Bolsonaro gostaria de ter tido relatório sobre todas ou apenas sobre algumas, as que são do seu interesse?

4: há uma quarta evidência fática de que o presidente pretende ter uma Polícia Federal sem autonomia. Ele exige, como se fosse de sua competência, que o órgão abra uma nova investigação sobre a facada. O caso já foi virado do avesso e não se encontrou evidência da conspiração que ele diz existir. Vale dizer: há a confissão tácita de que deseja uma polícia que produza um resultado predeterminado.

5: há uma quinta evidência fática, esta também saída do seu pronunciamento. Ele revelou que teve acesso ao conteúdo de um testemunho que era sigiloso.

Observem que, até aqui, não é preciso acreditar nas palavras de Moro. Basta acreditar no que diz o próprio Bolsonaro, ora bolas!

E há, claro, as afirmações de Moro. Segundo o ministro, o presidente estava preocupado com investigações em curso, especialmente a que trata da indústria criminosa geradora de fake news e que, tudo indica, esbarra em Carlos Bolsonaro, seu filho — que vem a ser, vejam a coincidência!, o membro da família mais próximo de Ramagem. Não deve ser mera coincidência.

É claro que o conjunto é moralmente indefensável. E, no terreno da moral, nem precisaria haver evidência de que o presidente pretende meter uma canga na Polícia Federal. Mais: os laços de amizade, a uma pessoa pudorosa, seriam suficientes para afastar a tentação da nomeação. Mas esses não são conceitos caros ao coração ou à imaginação de Bolsonaro. Então ele nomeia.

As acusações de Moro ainda serão investigadas. Já há evidências fáticas de sobra demonstrando por que Ramagem não pode ocupar o cargo.

Afinal, define o caput do Artigo 37 da Constituição:
"A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência"

O Artigo 37 está na origem das duas liminares concedidas por Gilmar Mendes, em marco de 2016, contra a posse de Lula como ministro da Casa Civil de Dilma. O ministro lembrou, então, o conceito de "ilícitos atípicos", que são atos revestidos de aparente legalidade, mas que buscam, na verdade, fraudá-la. Estava dado, naquele caso, segundo o que se conhecia à época, o "desvio de finalidade".

Moro manipulou o vazamento de gravações que criaram a evidência, que depois se viu falsa, de que o objetivo da nomeação seria preservar Lula de eventual decisão da Justiça e não servir ao Estado brasileiro. A decisão de Mendes estava correta. Os fatos é que não estavam porque tinham sido arranjados por Moro. Mas não havia como saber.

Desta feita, no caso de Ramagem, não há chance de ter havido manipulação. Esqueçam o que Moro disse. Deixem isso para a Polícia e a Justiça. É preciso ficar atento ao que afirmou o próprio Bolsonaro e às evidências já tornadas públicas das conversas entre o presidente e seu ex-ministro e entre este e uma deputada.

Lembro mais uma vez que a ministra Cármen Lúcia concedeu, em janeiro de 2018, liminar contra a posse da então deputada Cristiane Brasil, indicada por Michel Temer para o Ministério do Trabalho. Evocou o princípio da "moralidade" inscrito no Artigo 37. Havia uma pendenga judicial entre a parlamentar e a Justiça do Trabalho.

É TAREFA DO SUPREMO OU DA JUSTIÇA FEDERAL?
O PDT entrou com um mandado de segurança no STF alegando justamente "abuso de poder por desvio de finalidade". É basicamente a alegação que se fez contra a posse de Lula. A Rede preferiu uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). Os deputados Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e Tábata Amaral (PDT-SP) recorreram, em ações distintas, à Justiça Federal. Consta que o MBL também vai acionar a Justiça, não sei ainda por meio de que instrumento.

Vamos ver. Faria sentido apelar à Justiça Federal porque, afinal, a prerrogativa de nomear alguém para o comando da PF está em lei federal — já a nomeação de ministros de Estado tem prescrição constitucional (Artigo 84). Mas Bolsonaro respeita a Lei 9.266 quando faz a indicação. Ela nada exige do nomeado. Apenas estabelece a competência.

Ocorre que a Polícia Federal é um "órgão permanente" do Estado brasileiro segundo dispõe o Artigo 144 da Constituição. E o Artigo 37 da Carta não exclui nenhuma repartição pública de seus mandamentos. Logo, trata-se de preservar um bem protegido pela Carta — e o Supremo é o tribunal encarregado de tal tarefa.

Entre Mandado de Segurança e ADPF, o primeiro parece mais adequado ao caso porque se trata de assegurar um bem constitucional que está sendo ameaçado pela prática evidente de abuso de poder de autoridade pública por meio de escancarado desvio de finalidade.

Bolsonaro poderia nomear para o cargo um delegado com quem brincava de Forte Apache (vocês sabem, aquele joguinho de matar índios...) desde criancinha se o escolhido reunisse qualidades para o cargo. A amizade seria irrelevante para a questão judicial. O que importa é o que já se tem de matéria factual demonstrando que a nomeação de Ramagem fere a legalidade, a moralidade e a impessoalidade.

O ministro ou ministra a quem couber decidir ou faz valer a Constituição ou se acoelha diante da tentativa de submeter um órgão de Estado aos interesses de um grupo e, como resta evidente, de uma família.

Nota para encerrar: pode até ser que, dada a natureza da corporação, o presidente nem conseguisse o efeito pretendido. Acontece que não estamos aqui a tratar sobre a eficiência ou não do presidente em burlar a norma constitucional. Importa é que não lhe seja dada a licença para tanto.

Atualização: às 10h11, a Folha informou que o ministro Alexandre de Moraes (STF) suspendeu a posse de Ramagem atendendo ao mandado de segurança do PDT, um dos que trata este texto.