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Reinaldo Azevedo

Bolsonaro e a fala errada em velório. E mais de 50 mil mortos de Covid-19

Colunista do UOL

22/06/2020 09h05

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O presidente Jair Bolsonaro foi neste domingo ao velório, no Rio, do jovem soldado do Exército Pedro Lucas Ferreira Chaves, da Brigada de Infantaria Paraquedista. Ele morreu ontem durante um exercício. Seu paraquedas ficou preso ao avião e, quando se soltou, não abriu. É claro que qualquer pessoa decente e razoável lamenta a tragédia e se solidariza com a família. Bolsonaro fez isso. Mas, como é quem é, foi além e mergulhou na inconveniência. Quem não respeita os vivos costuma não saber reverenciar os mortos. Quem não reverencia os mortos costuma não saber respeitar os vivos. Vamos ver.

Afirmou o presidente:
"Nenhuma mãe jamais sonhou passar. Nós, pais e mães, damos a nossa vida por nossos filhos. (...) A nossa missão, a missão das Forças Armadas, é defender a pátria, é defender a democracia. E, como dizia -- que se tornou um grande amigo -- o ex-ministro Leônidas Pires Gonçalves, nós estamos a serviço da vontade da população brasileira".

O velório de um jovem soldado, vítima de um acidente que lhe custou a vida, não é lugar para proselitismo sobre o papel das Forças Armadas, que nunca esteve em questão: nem na tragédia em si nem no velório.

Sim, o papel das Forças Armadas é defender a pátria de ameaças externas, mas a defesa da democracia é atribuição da sociedade civil e dos Poderes constituídos. Quando o Artigo 142 da Constituição dispõe que a elas cabe "a garantia dos poderes constitucionais", isso quer dizer que tais Poderes não podem ser obstados por aquelas ameaças. Excepcionalmente, de cordo com lei específica, atuam como força subsidiária na garantia da segurança pública.

Leônidas Pires Gonçalves era ministro do Exército quando se descobriu que Jair Bolsonaro pretendia explodir bombas em quarteis e tinha um plano para mandar para os ares a adutora do Guandu, no Rio. O pretexto eram os baixos salários. A Veja publicou a reportagem em 1987. Comissão interna do Exército reconheceu a veracidade dos fatos relatados pela revista, mas Bolsonaro acabou absolvido pelo Superior Tribunal Militar, embora o croqui do atentado, desenhado pelo próprio, tivesse vindo à luz.

Inicialmente, o então ministro do Exército duvidou da história, mas depois reconheceu a sua veracidade. O "grande amigo Leônidas" — e morto não tem como contestar a versão — apontou em Bolsonaro, então, "indignidade para o oficialato".

O presidente tem a mania de fantasiar sobre o futuro. Mas é ainda mais mitômano sobre o passado. Afirmou dia desses que enfrentou a guerrilha de Carlos Lamarca no Vale do Ribeira. Falso. Quando os conflitos aconteceram na região, ele tinha apenas 15 anos. O homem que saudava o jovem Ferreira Chaves nunca foi um bom soldado.

A descoberta do plano lhe custou, ainda antes do julgamento, a expulsão da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao). De resto, ainda que general Leônidas não fosse exatamente um fã da democracia, garantiu a transição para o poder civil. Antes de Fabrício desabar no colo de Bolsonaro, o presidente estava dedicado a pregar golpe de estado.

OS MAIS DE 50 MIL CIVIS
O que se vai escrever aqui em nada relativiza ou diminui o justo lamento pela morte do jovem Pedro Lucas Ferreira Chaves. Seria um gesto digno o presidente ir a seu velório se lamentasse com igual contundência as 50.659 pessoas que morreram vítimas da Covid-19. Estes são os números deste domingo. Estima-se em quase 25 mil a subnotificação de óbitos.

Mas não. Para estas, há a condução estupidamente irresponsável do Ministério da Saúde. A frase que marcará a história deste senhor à frente da Presidência da República será esta: "Todo mundo morre um dia".

Assim, um ato de solidariedade que poderia honrar o presidente se converte em proselitismo detestável e, para não variar, numa tentativa de reescrever a história e a própria história.

Pedro Lucas e sua família merecem mais respeito.