Constituição do B: a leitura pró-vulneráveis e a violação por politicagem
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Eis que, do nada, começaram a brotar os literalistas de ocasião. Nunca me pareceu que houvesse tantos amantes do texto constitucional ou legal, como estão redigidos, pouco importando a sua funcionalidade ou a sua harmonização com o arcabouço jurídico. A ser assim, proíba-se o Supremo de fazer interpretações conforme a Constituição, como fez Gilmar Mendes no caso da reeleição dos respectivos presidentes da Câmara e do Senado, e se restrinja o alcance, ou se extingam, da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), da Ação Declaratória de Constitucionalidade e da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão.
Talvez devamos constituir um "Comitê de Literalistas" — necessariamente gramáticos — para examinar as pendengas legais. Está escrito? Está! Então ok. Não está? Então não há debate possível. Os ministros teriam bem menos serviço.
Mas vá lá: poderia, ao menos, haver honestidade mesmo dentro do equívoco. Vale dizer: o sujeito que está, agora, sendo literalista então o seria sempre, em qualquer ocasião. Mas será mesmo assim?
Abaixo, escrevo um texto em que trato do voto de cinco dos seis ministros que agora se tornaram fanáticos do texto como está, pouco importando se aquilo faz ou não sentido. Então vamos ver.
SEGUNDA INSTÂNCIA
Alguns dos colunistas mais furibundos com o voto que autorizava Câmara e Senado a tornar viável a reeleição, com as restrições especificadas (leia texto), são fanáticos defensores da execução da pena depois da condenação em segunda instância. Nesse caso, sim, estamos diante de uma violação da Constituição -- e violação qualificada. O Inciso LVII do Artigo 5º -- "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" -- é cláusula pétrea e não pode ser mudado nem por emenda, como dispõe o Artigo 60.
E daí? Sergio Moro, hoje sócio dos que gerenciam empresas que a Lava Jato quebrou, queria violar a Constituição por projeto de lei. E com apoio desses vetustos colunistas. Tudo em nome do combate à corrupção! Que gente moralista! Que gente séria! Que gente honrada! Para manter Lula em cana, vale qualquer negócio.
A EXECUÇÃO DA PENA ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO VIOLA TEXTO EXPLÍCITO DA CONSTITUIÇÃO.
Como a quase totalidade dos moralistas de ocasião apoia a violação, especialmente porque concorre para trancafiar Lula, então se ouviu o grande silêncio. Transgressão boa é aquela com a qual eles concordam.
FORO ESPECIAL
Também em nome do combate à impunidade, não se esperou que o Congresso mudasse por emenda o foro especial por prerrogativa de função. Votou-se uma simples questão de ordem, proposta pelo ministro Luiz Roberto -- um dos seis que disseram "não" à mudança do texto que trata da reeleição para as respectivas Mesas do Congresso. E pronto! Garantias constitucionais foram para o lixo porque seriam "privilégios".
Só por isso o deputado Arthur Lira (PP-AL) pode suspirar aliviado caso não se reveja a aberração. Como as rachadinhas que o fizeram se tornar réu ocorreram ao tempo em que era deputado estadual e como a investigação se deu na esfera federal, o juiz declarou ilegal a coleta de provas e ponto. O processo está extinto.
Aqui se alertou muitas vezes que, privilegiado de verdade, pode ser o foro da aldeia de um acusado, não é mesmo? Ou, no outro extremo, o réu pode ficar exposto à fúria de inimigos locais. Talvez esses nossos patriotas mereçam mesmo ter Jair Bolsonaro na presidência da República e Lira na da Câmara. O problema é que o país se dana junto.
Por que, à época, quase ninguém disse — AQUI SE DISSE! — que a Constituição estava sendo violada?
MANDAR PARA A PRIMEIRA INSTÂNCIA AUTORIDADES COM FORO ESPECIAL VIOLA VÁRIOS ARTIGOS DA CONSTITUIÇÃO. E, COMO PROVA O CASO DE LIRA, PODE CONCORRER PARA A IMPUNIDADE.
Como a quase totalidade dos moralistas de ocasião entende o foro especial como um privilégio, então se calaram diante da violação de múltiplos artigos da Constituição. Transgressão boa é aquela com a qual eles concordam.
MEDIDAS CAUTELARES PARA SENADORES E DEPUTADOS
Como sabe qualquer criminalista mesmo mediano, as medidas cautelares previstas no Artigo 319 do Código de Processo Penal são ditas "diversas da prisão" porque ALTERNATIVAS à prisão. Vale dizer: só podem ser aplicadas quando, em tese, caberia a prisão preventiva, que pode ser dispensada em razão de circunstâncias avaliadas pelo juiz.
Ou por outra: não cabendo prisão preventiva, não cabem as "medidas diversas". Desafio qualquer valente a me indicar em que lugar da Constituição está escrito que deputados e senadores podem ser alvos de medidas cautelares. O Supremo já mandou prender um senador, e não foi em flagrante de crime inafiançável, exceção única aceita pela Carta. Já afastou presidente da Câmara do seu mandato e tentou suspender de suas funções um presidente do Senado.
Chegou-se a um arranjo, que não deixa de ser exótico, que permite a imposição de medidas cautelares desde que não afetem a integridade do mandato. Mais uma vez, dane-se o que está escrito no Parágrafo 2º do Artigo 53:
"§ 2º Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão."
Não havendo, para eles, prisão preventiva, não pode haver cautelares alternativas à dita-cuja.
A APLICAÇÃO DE CAUTELARES VIOLA A CONSTITUIÇÃO E É INDEFENSÁVEL POR QUALQUER PESSOA QUE LEVE A SÉRIO O TEXTO DA CARTA. NESSE CASO, NÃO HÁ INTERPRETAÇÃO ALTERNATIVA OU CONFORME.
Como a quase totalidade dos moralistas de ocasião acha que político tem de apanhar primeiro para que se pergunte depois se a coisa foi merecida ou não (menos Sergio Moro, é claro!), então o texto constitucional vai para o lixo. E os valentes aplaudem.
COTAS RACIAIS
Já me opus fortemente a cotas raciais nas universidades porque entendia que o princípio da igualdade, consagrado pela Constituição, impede a discriminação positiva ou negativa. Também considerava, além da questão constitucional, que a escolha geraria ineficiências e que a igualdade se daria com uma escola pública decente para todos ou com a democratização das escolas privadas.
Nem as escolas privadas se democratizaram nem a pública melhorou. A situação só fez piorar. Mais: o desempenho dos cotistas não é distinto do de não cotistas.
Mudei também meu entendimento sobre a literalidade da Constituição nesse caso. Cedi ao ponto de vista, que hoje me parece inquestionável, de que o texto explícito, que assegura a igualdade, acaba consagrando o seu contrário: a desigualdade. Vale dizer: para que se chegue àquilo que a Carta pede, é preciso que se leiam as cotas segundo os valores da Carta, não segundo a letra apenas.
Se temos em curso uma máquina de reprodução da desigualdade, impedir a discriminação positiva — as cotas — em nome do princípio da igualdade implica reproduzir desigualdades. Em certa medida, volta-se à essência da alforria como se viveu no Brasil: "Você agora é livre e igual aos brancos, meu caro negro! Caia fora da fazenda e se vire". Pergunto: os escravos livres, mas sem compensações, eram iguais aos brancos livres? Teriam como se tornar iguais?
Bem, os reflexos disso a que se chamou "abolição" estão aí até hoje: na renda, nos salários, nas vítimas de homicídio, na população carcerária, nas crianças mortas por balas perdidas.
OS LITERALISTAS DE AGORA PEDIRÃO A REVISÃO DAS COTAS — AFINAL, LETRA É LETRA —, OU PODEM, EXCEPCIONALMENTE, AINDA QUE TAMBÉM EXCEPCIONALMENTE CERTOS, DEIXAR A DITA-CUJA DE LADO?
UNIÃO HOMOAFETIVA
O parágrafo 3º do Artigo 226 da Constituição é explícito e incontroverso na sua literalidade:
"Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento."
De 1988 a esta data, o debate sobre gênero e identidade sexual avançou bastante. Em 2011, o Supremo reconheceu a união homoafetiva como família, a despeito das palavrinhas "homem e mulher" do Parágrafo 3º. Sou favorável à plena igualdade, para todo e qualquer efeito jurídico, da união entre duas pessoas, pouco importando gênero ou identidade. Mais: desde sempre, defendi a adoção de crianças por casais gays. Já escrevi muito a respeito.
Mas critiquei à época a decisão do Supremo porque entendi que cabia ao Congresso apresentar uma emenda para mudar o texto constitucional. Note-se, no entanto, que o texto continua lá, quase 10 anos depois, sem alteração.
Assim, o STF foi contra o que está escrito, e o percurso seguido pelo tribunal foi o mesmo das cotas, ainda que haja, nesse caso, uma especificação inexistente naquele. À medida que o texto constitucional impõe essa restrição, o que se faz é negar valores consagrados na Carta, a começar pela igualdade. Ora, então casais do mesmo sexo devem ser excluídos do guarda-chuva protetor da igualdade?
Ah, sim: teria sido muito melhor que se ocupasse o próprio Congresso de fazer a coisa certa. Mas não se ocupou. O mesmo se diga sobre estender para a homofobia a punição que cabe a quem comete crime de racismo. Um tribunal pode ficar silente diante de omissões que acarretam prejuízos reais às pessoas apenas por serem quem são?
OS LITERALISTAS DE AGORA VÃO CERRAR FILEIRAS COM O MINISTRO DA (IN)JUSTIÇA, ANDRÉ MENDONÇA, QUE, PRETEXTANDO O DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO, QUER TORNAR CONSTITUCIONAL O PRECONCEITO CONTRA GAYS?
PROIBIÇÃO DA DOAÇÃO DE EMPRESAS A CAMPANHAS
Se alguém achar uma vírgula na Constituição que a justifique, ainda que oblíqua, paro de escrever. E se proibiu. Com o apoio dos moralistas da hora. Desculpa: feriria o princípio da igualdade, já que as empresas ricas acabam se distinguindo dos demais cidadãos. E se permitiram doações privadas de pessoas físicas, inclusive do candidato para si mesmo. Pronto! A desigualdade foi consagrada, e as campanhas mergulharam na clandestinidade. É crescente a influência do crime organizado nos pleitos -- importância que tende a crescer.
Mais uma vez, o Supremo — com o entusiasmo da mesma patota que agora resolveu ser literalista agora — legislou à vontade. O voto de Gilmar Mendes e dos quatro que o seguiram, um parcialmente, devolvia a bola ao Congresso.
VOLTO AO CASO DA CÂMARA
O que Gilmar Mendes e os outros três ministros, ou quatro, fizeram no caso da reeleição para a presidência da Câmara e do Senado foi uma interpretação conforme a Constituição.
É compreensível que haja os que discordem da tese ou do caminho. Tratar, no entanto, a coisa como uma agressão inominável à Constituição corresponde a desconhecer o voto. Mais: aqui e ali, um ou outro que o criticam, manifestaram-se em circunstâncias em que a Carta foi realmente violada. Mas são exceções.
Em regra, os que agora estão fazendo barulho são notórios defensores ou de agressões explícitas à Carta (como aquela só para prender Lula) ou de interpretações que são entendidas, segundo os seus valores, como "avanços".
Sim, a gritaria reúne motivações distintas. Há até os bem-intencionados, que condescenderam com as releituras porque entendiam que estavam advogando em favor do bem.
Anotei os nomes dos críticos de agora. Ficarei atento ao que escreverão e dirão quando se tentar estuprar este fundamento:
"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Está por pouco.
É cláusula pétrea.
A propósito: o tal grupo Muda Senado — depredadores ensandecidos do voto dos quatro ministros — são os defensores mais entusiasmados da violação da Constituição no caso do trânsito em julgado.
Já deixei claro que me opus à mudança de entendimento que foi costurada no Supremo — Gilmar Mendes foi apenas o relator — porque preferia o caminho da emenda e porque achava que ela abriria a picada para que o oportunismo posasse de Catão da moralidade. Como se vê.