Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Protesto contra Bolsonaro foi muito tímido em evento da falsa paz perpétua
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Que coisa, né? Assistimos ao começo da paz perpétua kantiana na solenidade de abertura do Ano Legislativo na Câmara, nesta quarta, com a presença de Jair Bolsonaro, Arthur Lira, Rodrigo Pacheco e Luiz Fux. Até os respectivos comandantes das Forças Armadas estavam lá — não sei fazendo exatamente o quê num caso como esse, mas estavam. Bem, é preferível que estejam ali num clima de congraçamento, ainda que um tanto de fachada, a estarem fora dali, ameaçando os Poderes, a exemplo do que fez Eduardo Villas Boas, então comandante do Exército, em 2018, com um tuíte que pretendeu ser um ultimato ao Supremo.
Deputados do PSOL protestaram e chamaram Bolsonaro de genocida e fascista. Achei pouco. Muito pouco. Já explico. Antes, vamos à tal paz universal.
Todos, até Bolsonaro, falaram em unir o Brasil e coisa e tal — embora, reagindo aos deputados que protestavam, ele tenha marcado um encontro para 2022, referindo-se, claro!, à disputa eleitoral. Fux exaltou o respeito às leis e à Constituição. Nem poderia ser diferente. E os respectivos presidentes das duas Casas falaram da agenda de reformas, da necessidade de atender ainda às vítimas econômicas da pandemia e, claro!, daquele assunto de que Bolsonaro não gosta muito: vacina. Tem medo de, num raro processo involutivo, virar um jacaré...
Tudo na santa paz de Kant, amém! Sim, Legislativo e Executivo se comprometeram com a tal agenda de reformas — que só não andou nos dois primeiros anos de mandato porque Bolsonaro não quis. Gastou boa parte do seu tempo tentando fechar o Congresso e o Supremo e sabotando o trabalho dos dignos e sensatos contra o coronavírus.
Fomos, como país, normalizando a sua estupidez no trato da democracia e da pandemia. Da sabotagem a uma simples máscara, passando pelo incentivo descarado às aglomerações, culminando com sua franca torcida contra a Coronavac, vimos de tudo. Segundo país em casos de contaminação e mortes, o Brasil havia vacinado até esta quarta pouco mais de 2% da população — com a primeira dose, bem entendido.
Mas retomo o fio. Junto com a agenda de reformas que ele próprio sabotou, veio a pauta ideológica: ampliar posse e porte de armas, excludente de ilicitude, mineração em terras indígenas etc. Na Câmara, impôs a Lira, que ainda está na fase da obediência, o nome da deputada Bia Kicis (PSL-DF) para presidente da Comissão de Constituição e Justiça. É investigada pelo Supremo no caso da divulgação de fake news e do apoio a atos antidemocráticos.
Mais do que isso: é uma notória defensora da intervenção militar e uma negacionista ensandecida no caso da pandemia. Em muitos aspectos, é pior do que Bolsonaro porque expressa seu obscurantismo reacionário com mais clareza. Com ela, não é paz que se quer, mas guerra. A reação na Câmara não foi boa nem entre deputados do Centrão. Eles querem alguma tranquilidade para não estragar os negócios. Aliás, Bia Kicis tratava seus novos aliados como escória até outro dia. Afinal, seu golpismo fala a linguagem da moral e dos bons costumes, como é corriqueiro em pessoas com tal perfil.
Diante da reação, ela própria passou esta quarta-feira tentando demonstrar que é de paz e que vai respeitar as regras do jogo. Que coisa! Uma farsante antes ou agora? A propósito: como é que alguém finge que defende um golpe de Estado? Como é que se faz isso de mentirinha?
A paz perpétua ali simulada é conversa para solenidade. Agora, Bolsonaro acha que está em condições de retomar a guerra. Vai tentar engabelar o Centrão com suas pautas reacionárias. Mas muitos querem mesmo é que ele pague o que foi acordado. O país precisa da vacinação universal para voltar a alguma normalidade — em meio à psicopatia coletiva que marca o governo — e tem de dar uma resposta aos pobres: ou uma variante do auxílio emergencial ou ampliação considerável do Bolsa Família.
E tudo há de ser feito, no trololó pacifista, sem furar o teto. E, claro!, pagando o preço que o Centrão continuará a cobrar para manter o apoio: cargos e verbas. Respeitando o teto, não há folga para malabarismos. Efeitos positivos de eventuais reformas não aparecem da noite para o dia. E, como a pauta acertada deixa claro, ainda é preciso manter nos cascos as milícias digitais. Lira e Pacheco terão de ter muita habilidade. Com fanáticos à frente de comissões?
PROTESTO
"Fascista"? "Genocida"? Um presidente que vai discursar, liderando uma súcia, em frente ao QG do Exército incitando a intervenção militar em seu próprio proveito tem um comportamento típico de um fascista. Um presidente que faz pouco caso de todos os métodos conhecidos pela ciência para diminuir a contaminação -- o que condena, pois, muita gente à morte, enquadra-se em uma das caracterizações contemporâneas de um genocida.
"Ah, precisamos ser muito rigorosos porque, historicamente, fascismo e genocídio são... etc." Ah, sim, tomemos todos os cuidados: ele atuou como um fascista; atuou como um genocida. Afinal, fora do controle, a doença mata muito especialmente pobres e pretos — alguns deles por asfixia.
Nos protestos a que compareceu, discursou para uma horda que pedia o fechamento da Casa na qual ele estava. Como não se desculpou nem admitiu erro, pode retomar aquele comportamento a qualquer tempo.
"Ah, mas talvez tais palavras pudessem ser deixadas para outro ambiente..." Bem, os deputados do PSOL pareciam alunos de um internato religioso quando comparados ao próprio presidente e a seus ministros naquela reunião de abril do ano passado, né?
Presidente que lidera ato golpista e que pede o fechamento do Congresso merece ser chamado segundo aquilo que fez.
Palavras pesadas? É, são sim. Não mais pesadas do que aquelas que incitaram as Forças Armadas a agir contra Congresso e o STF e que comemoram o suposto insucesso de uma vacina, tripudiando sobre muitos milhares de mortos.
O que me espantou foi outra coisa: por que tão poucos protestaram?