Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Desconstruindo o sorriso de Monalisa de Fachin. Ou: São 8 pragas, ministro!
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Edson Fachin chegou ao Supremo com um certo déficit de credibilidade na defesa do devido processo legal e viu as circunstâncias o guindarem à condição de relator do chamado "petrolão". Se as direitas temiam suas heterodoxias passadas como militante de esquerda, surpreenderam-se bem depressa. Positivamente para elas. Só para elas.
Convertido em paladino da moral e baluarte da luta contra a corrupção, surfou na onda da moralização da vida pública e logo passou a ser um ídolo dos seus antigos antípodas. Está, de novo, no centro de uma operação de lavagem da história: não para retirar-lhe a sujeira, o que seria meritório, mas para dar aparência de licitude ao ilícito, assim como alguns lavam dinheiro. Este é um crime tipificado; o outro é uma mistificação que cedo ou tarde se revela. Se depender de mim, será cedo. Já volto ao ministro. Tenho de fazer antes algumas considerações.
NÃO SE COMBATE A CORRUPÇÃO COM CORRUPÇÃO
Por que, numa democracia (não trato das ditaduras; nestas, tudo é possível), os agentes do Estado não podem apelar a ilegalidades para enfrentar o malfeito? Porque provocam um mal superior àquele que buscavam combater.
Não compreender esse princípio ou opor-se a ele corresponde a escolher o vale-tudo e entregar-se às vontades dos poderosos da hora. É uma verdade elementar. É um truísmo. Vale aqui e em qualquer lugar. Por essa razão, as democracias repudiam os vícios processuais e criam não apenas um código que define os delitos e as penas. Também se esmeram em estabelecer as regras com que se dará o processo penal.
O órgão acusador, o juiz e o defensor são os pilares que suportam o edifício democrático no que respeita aos delitos e às penas. Cada um deles tem suas obrigações e prerrogativas. Para que o Estado possa processar um indivíduo e, em caso de condenação, aplicar as sanções, não pode haver nem a sombra de uma ação concertada para punir.
Se aquele que acusa e aquele que julga estabelecem uma sociedade — política, ideológica, pecuniária ou outra qualquer —, não são apenas os direitos do José, do João ou do Luiz Inácio que estão ameaçados. Todo o edifício se corrompe porque o arbítrio substitui a regra do jogo. E pouco importa um juízo sobre as intenções.
O INQUISIDOR, O TORTURADOR, AS MILÍCIAS
Como asseverar que não havia genuíno desejo de purificação e justiça no Santo Ofício? O torturador que serviu à ditadura militar era necessariamente um ideólogo? Convenham: poderia ser um qualquer do povo, lotado numa repartição policial. Disseram a ele que aquele que estava lá, à mercê das brutalidades, era alguém que pretendia fazer um grande mal ao Brasil. Que se arrancasse dele uma confissão a qualquer custo.
Não foi muito diferente com os prisioneiros de Abu Ghraib, não é mesmo? Os "soldados da liberdade" recorreram a métodos os mais detestáveis. E não necessariamente contra inocentes. Eis o ponto: não é a inocência ou a culpa que tornam a persecução legal ou arbitrária. Na origem, as milícias ofereciam proteção a vítimas do crime organizado. E hoje elas disputam território com os criminosos que antes combatiam — estão vencendo e já conquistam postos no Estado brasileiro.
LAVA JATO
Digam-me cá: há ainda alguém com um mínimo de honestidade intelectual que ignore as óbvias, as escancaradas, as evidentes ilegalidades cometidas pela Lava Jato sob o pretexto de combater a corrupção? Se forem admitidas como aceitáveis, com que outras condescenderemos no futuro?
"Está comparando os bravos de Curitiba com o Santo Ofício, com os torturadores da ditadura militar ou de Abu Ghraib e com as milícias?" Convém pensar antes de se escandalizar.
Elenco situações em que aqueles que estão encarregados de fazer valer a vontade do Estado ou que se colocam como porta-vozes de anseios coletivos podem operar sem limites. O Santo Ofício, é verdade, tinha um código — que compreendia a tortura purificadora. Mas não é preciso grande esforço para chegar à conclusão de que lá não estava o Deus misericordioso da Palavra. Em nome dela e contra ela se torturava e se matava.
Qual é o legado permanente que nos deixaram duas ditaduras, a do Estado Novo e a militar? A tortura como rotina. Mesmo depois de oficialmente banida e tornada crime imprescritível e inafiançável, é prática corrente nos presídios país afora, ainda que, muitas vezes, possa ser terceirizada. Mesmo que o Estado, como regra, não torture e mate, permite que se torture e mate.
Reitero: não é o criminoso nem a fealdade do seu crime, segundo os códigos vigentes da hora, que definem quais métodos são ou não aceitáveis, quais procedimentos são ou não legais, quais transgressões são ou não admissíveis.
Na democracia, o Estado não se torna criminoso para combater o crime.
DE VOLTA A FACHIN
Leio no Estadão:
"Demorou, mas o ministro Edson Fachin demonstra preocupação com o legado da Lava Jato. O relator da operação no Supremo Tribunal Federal tem dito, segundo seus interlocutores, ser importante mostrar para a população a abrangência das ações de combate à corrupção para além de Curitiba, onde o pessoal de Deltan Dallagnol e Sérgio Moro atuavam diretamente. No horizonte de Fachin, o temor é um só: uma eventual derrota de Moro no caso da suspeição do ex-juiz, pedida pela defesa de Lula, pode contaminar a operação de cima a baixo."
Fachin anda com interlocutores às pencas. Quem são? Releiam o que vai acima. A conclusão é uma só: ainda que Moro seja suspeito — e ele, obviamente, é —, o ministro parece recomendar que a sentença não seja anulada porque isso "poderia contaminar a operação de cima para baixo".
Não sei o que significa "contaminar a operação de cima para baixo". Sei o que significa uma operação contaminada por atos de escancarada ilegalidade. O que sugere Fachin? Que se deixe tudo como está para que não se passe a impressão de condescendência com a corrupção?
Seria Edson Fachin como aqueles intelectuais europeus de esquerda das décadas de 40 e 50 do século passado, que se negavam a reconhecer os óbvios crimes de Stálin -- inclusive os horrores dos Processos de Moscou contra militantes esquerdistas -- para que não se manchasse a reputação do socialismo?
O MINISTRO E AS SETE PRAGAS
Apontei aqui precocemente a nota fora do tom de Fachin quando veio à luz o livro do general Eduardo Villas Bôas relatando as circunstâncias dos malfadados tuítes de 3 de abril de 2018, quando, então, deu uma espécie de ultimato ao Supremo, deixando no ar a ameaça de um golpe caso Lula fosse libertado.
Com três anos de atraso, Fachin saltou das tamancas e resolveu fazer um repto contra os militares — e passou, a partir de então, a se apresentar como um antimiitarista. Resolveu até inventar as "Sete Pragas da Democracia Segundo Fachin"...
Curioso este senhor, observei então. Em 2018, era ele o relator do habeas corpus que poderia ter tirado Lula da cadeia. O que o general fazia era, ora vejam!, ameaçar os ministros para que votassem como... Fachin. Não sendo analfabeto, e o ministro não é, leu o que escrevera, então, o comandante do Exército e fechou-se em obsequioso silêncio.
Já tinha dado um truque anterior. O HC estava destinado a ser votado na Segunda Turma. Fachin desconfiou que perderia. Então resolveu apelar ao pleno. Se, agora, decidiu enxergar ameaça dos tanques, os tanques votaram com ele em 2018 e não deu um pio.
Por isso estranhei a sua reação quando o livro veio à luz. O general já havia dito coisa pior em entrevistas. Nesse caso, coragem tardia é só confissão de covardia.
Acontece que o ministro já estava preparando o passo seguinte. Aquele seu sorriso entre a Monalisa e o sacristão punitivista, tem lá as suas estratégias.
AS SETE PRAGAS
Na entrevista que concedeu à Folha no dia 9 de fevereiro, o grande e formidável Fachin resolveu apontar aquelas que seriam as sete ameaças à democracia brasileira. Transcrevo:
"Em primeiro lugar, a remilitarização do governo civil, que é um sintoma preocupante. Em segundo lugar, intimidações de fechamento dos demais Poderes. Em terceiro, declarações acintosas de depreciação do valor do voto. Em quarto, palavras e ações que atentam contra a liberdade de imprensa. Em quinto lugar, incentivo às armas e, por consequência, à violência -- o Brasil precisa de saúde e educação, não de violência nem de armas. Em sexto lugar, a recusa antecipada de resultado eleitoral adverso. Em sétimo lugar, revelando, portanto, que vivemos uma crise da democracia, e a corrupção da democracia é o arbítrio, há um grave problema da naturalização da corrupção de agentes administrativos e, portanto, isso mostra que a corrupção da democracia está no presente momento associada às forças invisíveis da grande corrupção."
ANTIBOLSONARISMO MORISTA
Enquanto bolsonarismo e morismo estavam juntos nas ruas pregando o fechamento do Supremo e do Congresso, Fachin nada disse. As manifestações se deram ao longo de todo o ano de 2019 e em parte de 2020. Ocorre que, nas ruas, demonizados eram os então presidentes da Câmara e do Senado e outros ministros do STF. Fachin não! Fachin era herói.
Manteve seu nada enigmático sorriso de sacristão que imita a Monalisa.
Armas? Por que o ministro não se manifestou por ocasião dos outros decretos armamentistas do presidente, que contaram com a anuência de Sergio Moro? Foi um aliado objetivo tanto das Dez Medidas Contra a Corrupção, quatro delas fascistóides — "Aha uhu o Fachin é nosso", imortalizou Deltan Dallagnol —, como do malfadado Pacote Anticrime do então ministro, que trazia excludente de ilicitude, também entendida como licença para o Estado criminoso matar preto e pobre.
Alguém tinha ouvido algum muxoxo do ministro contra o excesso de militares no poder? Não! Então vamos ver. Enquanto Moro estava no poder e se acreditava que o Tribunal do Santo Ofício, do qual Fachin faz parte, daria as cartas, o magistrado silenciou diante de ao menos seis das sete pragas que ele mesmo aponta:
1- remilitarização;
2 - ações de intimidação contra os Poderes;
3 - depreciação do valor do voto (ou Bolsonaro começou ontem?);
4 - ataques à liberdade de imprensa;
5 - incentivo às armas;
6 - recusa antecipada do resultado eleitoral.
TRAPAÇA INTELECTUAL
Com a devida vênia, caia na trapaça histórica e intelectual quem quiser -- e, não por acaso, são as correias de transmissão do lavajatismo na imprensa que estão fazendo de Monalisa o Schopenhauer da democracia.
O sétimo item que falta na lista acima é justamente o combate à corrupção. E então se chega ao "É da Coisa": Fachin está manipulando a, digamos, "Agenda Democrática" para, na verdade, tratar de um único assunto. Tenta fazer pressão para que a Segunda Turma deixe de cumprir o que é, a esta altura, uma obrigação jurídica, imposta pelos fatos, além de ser, desde sempre, uma obrigação moral: declarar a suspeição de Moro.
O doutor, então, ameaça com o fantasma do cancelamento em cascata de condenações para, de forma sorrateira, reivindicar: mantenha-se a condenação de Lula, apesar de todos os descalabros, para o bem do Brasil. Mais: endossem-se todos os atos vergonhosos e ilegais da Lava Janto em nome da moral.
Afinal, ele passou dois anos de bico fechado enquanto aqueles outros seis itens corriam soltos, inclusive com o apoio de Sergio Moro, seu aliado nesse jeito liberticida de combater a corrupção.
Acrescente aí, ministro, uma oitava praga a corroer a democracia: autoridades encarregadas de aplicar a lei que ignoram o devido processo legal. Talvez esse item deva vir em primeiro lugar. Afinal, foi ele que trouxe consigo os outros sete.
E tudo se deu sob o seu silêncio. Era distração, cumplicidade ou cálculo, que acabou se revelando malsucedido?