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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Cármen dá voto corajoso. Justiçamentos na Justiça lavram a Terra dos Mortos

Cármen Lúcia: ministra teve a coragem de mudar o seu voto porque a autoridade maior para um juiz é Sua Excelência o Fato  - Foto: Valor
Cármen Lúcia: ministra teve a coragem de mudar o seu voto porque a autoridade maior para um juiz é Sua Excelência o Fato Imagem: Foto: Valor

Colunista do UOL

24/03/2021 07h33

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Começo este outro artigo sobre o resultado da votação desta terça, na Segunda Turma, saudando a coragem da ministra Cármen Lúcia. Já analisei aqui os votos de Gilmar Mendes, de Ricardo Lewandowski e de Nunes Marques. Os dois primeiros, que ainda não haviam se manifestado nesse habeas corpus, evidenciaram, com clareza solar e riqueza de dados, a suspeição de Sergio Moro. Que fique claro: houvessem triunfado os votos de Edson Fachin e de Nunes Marques, que se pronunciou nesta terça, o direito estaria morto, e tudo seria permitido num processo.

Sim, não foi sem melancolia que destrinchei aqui o voto do mais recente ministro da Corte, indicado por Jair Bolsonaro. Prefiro que os homens públicos façam as coisas certas, de acordo com as regras do jogo, porque isso aumenta as possibilidades de se chegar a um bom resultado e de o país melhorar. A independência de um juiz é um dos pilares da democracia. Sem ela, o que se tem, é tirania ou regime de compadrio.

Um magistrado só não pode independer das leis e dos fatos. Infelizmente, nesta terça, Nunes Marques fez de conta que era Moro a arcar com o peso de uma eventual condenação viciada. E reivindicou o direito de defesa não para o réu, mas para o juiz. Não me lembro de a corte ter passado antes por tamanho constrangimento nem de avaliação tão estrambótica.

Sim, já discordei de Cármen Lúcia muitas vezes — incluindo a sua primeira manifestação nesse caso, quando votou contra a suspeição, acompanhando Fachin. Como sabem, acho que a Vaza Jato é um dos mais importantes trabalhos jornalísticos em décadas. Às suas revelações, juntam-se agora uma fartura de diálogos dos arquivos da Operação Spoofing. Espero que estes tempos ainda venham a ser caracterizados pelos estudiosos do direito como "A Era do Terror Judicial".

De toda sorte, também já escrevi aqui, nem se faziam necessárias as evidências dessa era de terror para que saltasse aos olhos a suspeição de Moro. Os diálogos entre procuradores e entre Deltan Dallagnol e o então juiz não constituem o fundamento da argumentação de suspeição apresentado pela defesa. No texto em que analiso o voto de Nunes Marques, aponto o conjunto de eventos que a demonstra de forma cabal.

Cármen Lúcia, no entanto, não estava convencida. Sim, eu considerava seu voto equivocado e já me manifestei a respeito mais de uma vez. E é neste ponto, então, que se deve exaltar a coragem da ministra no episódio. Mudar um voto revela humildade intelectual — não a humildade humilhada de quem não é dono da própria vontade, mas a de quem não sobrepõe a convicção e o prejulgamento aos fatos. Convenham: é o que todo juiz deveria fazer.

A mudança revela também destemor. Cármen é experiente e sabia os desdobramentos decorrentes de seu voto de desempate. O resultado tem consequências políticas. E, ora vejam, cumpre constatar: esse caso e a Lava Jato como um todo precisavam passar justamente por um processo de despolitização. Juízes não podem ser operadores da política.

Ao longo de mais de seis anos, os protagonistas da força-tarefa foram hábeis — e contaram, para tanto, com a adesão perniciosa de amplos setores da imprensa — em criar a falácia de que ou se estava com a Lava Jato ou se estava contra ela. Ou se era reverente a seus postulados, inclusive aqueles que agrediam os princípios elementares do direito de defesa, ou, então, se era um defensor da corrupção. E, convenham, nada corrompe mais o direito do que essa forma de milicianização da Justiça — que não pode abrigar justiceiros.

Mas não quero me estender sobre as aberrações da Lava Jato. Tenho me ocupado dela ao longo desses seis anos, a um custo pessoal gigantesco. Não é fácil enfrentar o ódio das hostes que se querem monopolistas do bem, do belo e do justo. Cansei de ouvir em conversas privadas críticas devastadoras à operação, oriundas de juristas, juízes, jornalistas e membros do Ministério Público. Mas bem poucos tiveram a disposição de enfrentar a metafísica influente.

A retomada do julgamento, com os votos que chamei "solares" de Mendes e Lewandowski, certamente calaram fundo na consciência jurídica da ministra. Por que falo em coragem? Porque ela saiu da posição confortável em que estava — afinal, já havia se pronunciado —, sabedora de que teria de enfrentar o ódio dos tais monopolistas da virtude. Passarei a concordar sempre com ela? Se sim, sim. Se não, então não. Minha concordância ou discordância, nesses casos, se voltam para o voto.

Fiquei especialmente satisfeito ao ver e ouvir a ministra evocar aquele que tem sido um dos Incisos mais esquecidos do Artigo 5º da Constituição, que é cláusula pétrea: o LV. E ele diz:
"LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes"

O direito à ampla defesa pressupõe a existência de um juiz imparcial, ou o que se tem é uma condenação ou uma absolvição em razão do que está fora dos autos. A ministra evocou ainda o Artigo X da "Declaração Universal dos Direitos do Homem", segundo o qual todo mundo tem o direito de ser julgado por um tribunal independente e imparcial.

Negar que tenha havido a quebra da imparcialidade, no caso em questão, depois de todos os elementos fáticos apresentados, corresponde a ignorar a realidade em nome de algum outro valor que não se coaduna com o desejo e a necessidade de fazer justiça.

É fundamental que se tenha claro que, nesta terça, não se decidiu se Fulano ou Beltrano são inocentes ou culpados. Algo muito mais grave estava em votação: saber se Fulano ou Beltrano podem ser condenados por um juiz parcial. Se eles podem, por que não eu, você, Cármen, o Luiz Inácio e o José da Silva?

É preciso que escolhamos se queremos mesmo ser todos iguais perante a lei ou se será a ausência de leis a nos igualar a todos, ocasião, então, em que justiceiros aparecem para oferecer os seus serviços.

E eles apareceram. E nos legaram a Terra dos Mortos. Superaremos nesta quarta os 300 mil cadáveres. Morreram de covid-19. Mas também morreram porque a política morreu antes deles.