Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Senado recebe 2º ataque boçal em 4 dias de homens de Bolsonaro. Até quando?
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Até quando o governo federal, por intermédio de seus delinquentes intelectuais, continuará a agredir o Senado Brasileiro, que tem feito tudo — e até um pouco mais — do que está a seu alcance para corrigir os desastres do Executivo? Na quarta-feira, vimos o tal Filipe Martins "ajeitar o terno", como ele disse, com um gesto que repete a mímica dos supremacistas brancos. No Brasil, note-se, o sinal quer dizer outra coisa. Fez o que fez enquanto o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, discursava numa sessão que ouvia Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores. Neste domingo, foi a vez de o próprio Araújo insultar a Casa ao atacar de maneira boçal a senadora Kátia Abreu (PDT-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores. Senador que se dispuser a dialogar com o Itamaraty, enquanto Araújo continuar ministro, é despido de vergonha na cara. Simples assim.
O ARTIGO DE KÁTIA
Recuperar as circunstâncias do ataque expõe o surrealismo em que vivemos. Neste domingo, a senadora publicou um artigo no jornal O Globo. O mais espetacular é que ela pôs foco menos na incompetência do governo -- o que também fez, mas não era o alvo do seu texto -- do que na obrigação que têm as duas grandes potências em colaborar com o país neste momento. Sim, senhores! Kátia lembra o papel que tem o país como produtor de alimentos. Escreve:
"Somos o maior exportador de alimentos da humanidade, somos o maior fornecedor de insumos no campo mineral, somos os guardiões da maior parcela do maior pulmão do planeta, a Amazônia. O Brasil não pode, com todo o respeito aos demais países e a todos os povos, ser tratado pela comunidade internacional e, sobretudo, pelos Estados Unidos e pela China (que detêm hoje o domínio na produção das vacinas da pandemia) como uma ilha no meio do oceano, cuja única atração são suas belezas naturais, que também temos, de sobra, por sinal."
Quando o Senado brasileiro, na prática, pediu vacinas ao governo americano, falei com a senadora. Ela fez afirmação muito parecida, deixando claro que cabia também ao Congresso uma cota de governança. E está certa. Incumbe à Câmara e ao Senado, ainda que não sejam Poder Executivo, esforçar-se para trazer vacinas ao país.
A senadora vive neste mundo e sabe com que tipo de gente lida o Senado. Sim, ela escreve o seguinte em seu artigo:
"Não podemos ter a arrogância subalterna que hoje o Itamaraty em Brasília mostra ao mundo. Temos de ter a humildade altiva de sabermos quem somos e quem continuaremos a ser, com quem contamos e com quem poderemos contar. A pandemia, sem dúvida, é uma crise. Mas é também uma grande oportunidade para fazer uma pequena aposta no Brasil, de forma a provar quem são nossos verdadeiros aliados. O Brasil das próximas décadas será marcado pela gratidão a esse gesto."
ARAÚJO ZANGADINHO
Araújo zangou-se e se comportou, para surpresa de ninguém, de modo pusilânime. Apelou às redes sociais para atacar a senadora, sugerindo que ela faz lobby em favor dos interesses chineses. Escreveu:
"Em 4/3 recebi a Senadora Kátia Abreu para almoçar no MRE. Conversa cortês. Pouco ou nada falou de vacinas. No final, à mesa, disse: 'Ministro, se o senhor fizer um gesto em relação ao 5G, será o rei do Senado.' Não fiz gesto algum. Desconsiderei a sugestão inclusive porque o tema 5G depende do Ministério das Comunicações e do próprio Presidente da República, a quem compete a decisão última na matéria".
O impasse sobre o 5G preocupa hoje a economia brasileira: indústria, serviços, setor financeiro, agronegócio... Todos! Não confio, obviamente, na síntese que este senhor faz da conversa. Qual a razão? Quem tem a coragem de escrever um artigo, como fez, afirmando que Donald Trump era o grande sacerdote do Deus do Ocidente e que deveríamos nos filiar à sua igreja é capaz de qualquer coisa. Mas convenham: ainda que a senadora tivesse empregado aquelas palavras, que mal haveria? Estaria apenas cumprindo o seu papel de presidente da Comissão de Relações Exteriores.
Em vez de um ministro, temos um prosélito, que fala como se fosse membro de uma seita de extremistas, alheio às necessidades de um país que abriu a contagem regressiva para os 400 mil mortos. E daí? Ele está preocupado é com os vírus imaginários que estariam contaminando o nosso espírito, não com as milhares de pessoas que hoje morrem sufocadas em hospitais colapsados.
É claro que é um ministro à altura do governo que temos. Tirar o presidente — a cada dia, isso parece ser mais urgente —, no entanto, não é tarefa simples. Já a demissão de Araújo se tornou uma questão de sobrevivência. Para o Senado, depois de duas agressões graves em quatro dias, também é uma questão de honra.
Quando falei com Kátia, na semana passada, ela sabe o que ouviu deste jornalista na forma de pergunta. Afirmei e indaguei: "Senadora, penso que vocês estão certos, sim, nesse esforço. Mas a senhora não avalia que o trabalho de vocês acaba neutralizado pela inoperância e pela incompetência do Itamaraty, que conta com o suporte do presidente?"
Ela observou:
"Eu concordo com as críticas, sim, mas temos de fazer alguma coisa. Os brasileiros não podem continuar a morrer assim, Reinaldo".
Eis aí: o braço de Bolsonaro no Itamaraty não só deixa de cumprir sua obrigação como busca alvejar quem trabalha.