Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Nise errou a diferença entre vírus e protozoário na ciência e na língua
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Não. Nise Yamaguchi não apontou a distinção entre protozoário e vírus, conforme se anda a dizer por aí. No máximo, ela tartamudeou uma resposta, e fica por conta da boa-vontade de quem ouve dizer: "É, vá lá, mais ou menos por aí". Fosse uma questão dissertativa valendo um ponto, o professor generoso daria um "0,25". O rigoroso — o meu caso —, zero mesmo.
"Quem é você para falar? Virou infectologia?" Não. Não virei. Não sou especialista na área. Mas gosto da Inculta & Bela. E, dentro dela, tenho especial predileção por sintaxe. Antes que demonstre que ela não acertou, eis uma questão: é relevante saber numa CPI a diferença entre vírus e protozoário?
Quando a depoente se tornou a principal referência do presidente da República em Saúde e quando se constata que suas ideias embasam os desastres protagonizados pelo governo, a resposta é "sim". Particularmente porque a doutora defende que um remédio que combate um protozoário seja usado como se fosse um antiviral.
O que perguntou Otto Alencar? Isto:
"Qual a diferença entre protozoário e vírus?"
E o que respondeu Nise? Isto:
"Os protozoários são organismos celulares, e os vírus são organismos que têm um conteúdo de DNA ou RNA",
Antas, porcos do mato e jacarés também são organismos celulares. E, no entanto, não são protozoários. Protozoários, antas, porcos do mato e jacarés têm conteúdo de DNA e RNA e, no entanto, não são vírus.
Para quem não entendeu, segue abaixo a mesmíssima estrutura, mas com outros elementos:
"Qual a diferença entre um pato e um pardal?"
Resposta correspondente à de Nise:
"O pato é uma ave que nada, e o pardal é uma ave homeoterma".
Ocorre que o pato também é homeotermo, certo?
Tanto a fala de Nise como o exemplo que dou destacam a semelhança, não a diferença.
"Ah, mas o contexto explica".
Não explica. O ouvinte ou telespectador pode tentar consertar o que ela disse.
Ou se acrescenta o adjetivo "unicelular" ao protozoário, chamemo-lo de "organismo" ou de "ser", ou nada se diz. Quantos são os seres celulares no mundo, incluindo os idiotas — já que a idiotia depende de um corpo que a abrigue —, que não são protozoários?
Ou se fala da "capsula proteica" — ou capsídeo — que abriga o ácido nucleico, ou não se diz o que é um vírus, que célula não é.
Nise Yamaguchi contou tantas mentiras na CPI, enquanto fazia campanha em favor da cloroquina — e se revelou no depoimento a mais obcecada de todos os que compõem o círculo de influência do presidente —, que se viu uma certa ânsia de sair por aí a declarar: "Ah, nem tudo o que ela falou está errado. Otto Alencar foi muito agressivo".
Está errado, sim. Ela não deixou claro o que torna um protozoário um... protozoário. Ela não deixou claro o que torna um vírus... um vírus.
Na verdade, o próprio emprego da palavra "organismo" para definir a ambos já pode render um bom debate, uma vez que se dá de barato, na língua, que "organismo" é uma "forma de vida", condição que a maioria dos cientistas nega ao vírus.
Não será a distinção correta entre vírus e protozoário que vai amenizar as mentiras contadas por doutora Nise. Afinal, correta não está. Ainda que estivesse, também não amenizaria nada.
Fosse certo afirmar que a diferença entre um protozoário e um vírus está no fato de que "os protozoários são organismos celulares, e os vírus são organismos que têm um conteúdo de DNA ou RNA", então também seria certo afirmar que a diferença entre um pato e um pardal está no fato de que "os patos são aves que nadam, e os pardais, aves homeotermas".
E as duas afirmações estão erradas.
