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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Manso, Bolsonaro apela ao "não sabia". Será a moderação véspera do escarro?

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

29/06/2021 06h09

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Que Jair Bolsonaro era aquele que falou ontem a seus seguidores às portas do Palácio, eles próprios menos entusiasmados do que habitualmente?

Pela primeira vez em meses, não o vimos vituperar contra ninguém. Não bateu no peito arrotando a própria moralidade nem atacou a imprensa. É bem verdade que não estava ao alcance de sua fúria nenhuma repórter. A gente sabe como estas duas condições numa só pessoa — jornalista e mulher — o tiram do sério. Falava aos seus. Aos de sua bolha.

Mas alguém já lhe deveria ter dito, àquela altura, que as coisas estão ficando um tanto complicadas na CPI. O esforço para emparedar e intimidar a comissão deu em nada. O tiro acabou saindo pela culatra. Já há o número de assinaturas para prorrogar a investigação por mais noventa dias.

A primeira fase, a da exposição do negacionismo que mata, já está esgotada. Os valores homicidas postos em prática foram devidamente caracterizados, esmiuçados e personalizados. Todas as nuances da psicopatia, da sociopatia e da delinquência intelectual, inclusive a de algumas tristes figuras que envergonham a medicina, foram expostas.

A primeira fase também evidenciou a negligência na compra de vacinas e a existência de um governo nas sombras. O resultado se conta em centenas de milhares de corpos.

Agora a comissão chegou à fase de investigar o "negocionismo". Não era, vejam que coisa!, só a ideologia que matava. Os mais espertos perceberam que a necropolítica não é avessa aos negócios. O desespero da população, a tensão permanente entre restringir as atividades e voltar à normalidade, a renitência do vírus entre nós, o desespero do próprio presidente, que viu sua popularidade despencar... Ah, todo isso abriu uma janela formidável para os negócios.

A morte em massa era uma chance de negócios para os larápios.

Não sei se o presidente recobra os velhos hábitos nesta terça. O fato é que, nesta segunda, nós vimos aquele Bolsonaro que se mostrou em junho de 2020, quando Fabrício Queiroz foi preso. Até então, e desde o primeiro dia de mandato, o presidente foi escalando o discurso golpista, chegando a fazer pregação às portas do QG do Exército em Brasília.

Quando o primeiro-amigo foi em cana — e dada a perspectiva de o primeiro-filho, Flávio, também se enrolar —, o presidente amansou o discurso. E só voltou ao padrão quando o seu antigo faz-tudo deixou a prisão, e o filhote conseguiu uma folga na Justiça. Sentiu-se forte o bastante para bulir, inclusive, com o Exército.

Agora as coisas azedaram de novo. As milícias bolsonaristas só não chamam o deputado Luís Miranda (DEM-DF) de santo. O resto vale. Mas observem que o próprio Bolsonaro não se atreveu a dizer que ele está mentindo. E, de certo modo, o parlamentar o desafiou a fazê-lo. Pelo visto, não vai acontecer.

A compra da Covaxin não foi suspensa, mas está sobre o telhado. Ontem, a Anvisa deu um "não" ao uso emergencial da Convidecia, que também trazia, para ser genérico, as digitais do deputado Ricardo Barros (Progressistas-PR), que, apesar de tudo, segue como líder do governo.

Quase abúlico, disse o presidente:
"Eu recebo todo mundo. Ele [Luís Miranda] que apresentou, eu nem sabia da questão, de como estava a Covaxin, porque são 22 ministérios. Só o ministério do Rogério Marinho [Desenvolvimento Regional], tem mais de 20 mil obras (...). Então, eu não tenho como saber o que acontece nos ministérios. Vou na confiança em cima de ministros e nada fizemos de errado".

Para quem bombardeou uma repórter com perdigotos imorais porque indagado sobre as negociações da Covaxin, é uma mudança e tanto, não é mesmo?

Ocorre que as tratativas para a compra da Covaxin, com a sua anuência, sim — enviou carta ao primeiro-ministro da Índia — datam do começo de janeiro. Em março, foi alertado pelo deputado Luís Miranda (DEM-DF) e por seu irmão, Luís Ricardo Miranda, funcionário da Saúde, que havia evidências de malfeitos na compra da vacina. E nada fez. Transferir responsabilidades a quem?

O governo dito incorruptível foi flagrado em meio a uma lambança bilionária envolvendo justamente as vacinas.

Vacinas.

Por falta delas, entramos na rota dos 600 mil mortos.

Melhor do que o discurso moderado seria mesmo, a esta altura, a renúncia. Mas não vai acontecer. Então ele que arque com o peso de sua obra.

Ah, sim: o tom moderado, no seu caso, é sempre a véspera do escarro, como naquele poema... O lobo percebe o perigo e se veste de cordeiro.