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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Fala de Fux é boa, mas vem um tanto tarde. E traz um escorregão inaceitável

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

02/08/2021 17h17

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O ministro Luiz Fux, presidente do Supremo, discursou nesta segunda em defesa das instituições e da democracia. O texto seria excelente se tivesse sido dito há três meses. Agora, ele é apenas mediano, ainda que diga todas as coisas certas — com exceção de uma: ainda há uma piscadela do velho admirador da Lava Jato paras as "ruas". Não! Juiz se dedica às leis e à Constituição. Quem se importa com a rua são os militantes políticos. Cada coisa em seu lugar.

O PAPEL DO SUPREMO
O ministro lembrou o papel principal do Supremo. E cada poder tem o seu próprio pilar. O do tribunal está aqui:

"Movido por esse espírito, o Supremo Tribunal Federal, seja nos momentos de calmaria, seja nos momentos de turbulência, tem cumprido o seu papel de salvaguardar a Constituição, atuando em prol da estabilidade institucional da nação, da harmonia entre os Poderes e da proteção da democracia, sempre pelo povo e para o povo brasileiro."

Todos nós e todos os Poderes, por certo, temos de respeitar a Carta, mas a última voz sobre o que quer o documento que nos rege é dos 11 ministros que compõem o tribunal. É assim por ordem divina? Não! É assim por um concerto de vontades: O concerto da democracia. E quem não quiser? Bem, nesse caso, há de querer ou de arcar com as consequências de ser um subversivo da ordem democrática, como hoje é Bolsonaro.

SOCIEDADE DE DIREITOS
Sigamos com Fux:

"Porém, harmonia e independência entre os poderes não implicam impunidade de atos que exorbitem o necessário respeito às instituições. Permanecemos atentos aos ataques de inverdades à honra dos cidadãos que se dedicam à causa pública. Atitudes desse jaez deslegitimam veladamente as instituições do país; ferem não apenas biografias individuais, mas corroem sorrateiramente os valores democráticos consolidados ao longo de séculos pelo suor e pelo sangue dos brasileiros que viveram em prol da construção da democracia de nosso país."

O ministro lembra qual é a essência da democracia: é o regime das garantias. Garantias de quê? Ora, garantia de direitos. Tanto é assim que, na quase totalidade, o texto constitucional é afirmativo, não proibitivo. E, mesmo quando proíbe, ele afirma um direito. Vale dizer: até quando restringe, ele liberta. Quando escreve: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", está dizendo que, aos olhos da ordem legal, "todos são inocentes" enquanto não se esgotarem os recursos. Entenderam? Nega para afirmar.

Mas isso, por óbvio, não quer dizer que tudo pode. O regime em que tudo é possível para o ditador e seus amigos é a tirania. Na democracia, há coisas que não podem ser feitas. E uma delas é negar os direitos fundamentais que a Carta assegura. Então Fux lembrou a Bolsonaro, mesmo sem citá-lo:

NÃO ACEITA TODOS OS DESAFOROS
Disse o ministro:

"Trago uma advertência, porém: democracia é o exercício da liberdade com responsabilidade. Tratando-se de higidez democrática, não há nada automático, natural ou perpétuo. Ao revés, o regime democrático necessita ser reiteradamente cultivado e reforçado, com civilidade, respeito às instituições e àqueles que se dedicam à causa pública. Ausentes essas deferências constitucionais, as democracias tendem a ruir."

Fux faz uma advertência importante. Este escriba a vem repetindo nesta página desde 2006, quando foi criada, há longos 15 anos. A democracia é uma construção e um pacto. Não cai da árvore dos acontecimentos, da árvore da vida. Não é a forma natural de ser dos homens. Esta, no que concerne à sociedade dos humanos, inexiste.

Assim, a democracia, para que seja realmente democrática, tem de ser cultivada. Assim como as tiranias não aceitam o que eu chamaria de "desaforo das liberdades públicas e individuais" — ou, então, rui, como ruiu o império soviético —, a democracia também repudia o desaforo dos que pretendem instituir em seu seio práticas tiranas, autocráticas, oligárquicas ou, para ficar no espírito do tempo, milicianas.

Portanto, é preciso que todos estejamos vigilantes e que saibamos, na hora certa, dizer o necessário "não". Por isso, digo que essa fala um pouco mais incisiva de Fux vem um pouco tarde. Não podemos partir do princípio de que nada afeta a democracia e e de que ela sobreviverá a todos os ataques. Razão por que estes têm de ser contidos e punidos.

APELO AO DIÁLOGO
Aqui, a essência da democracia para quem a compreende:

'Entretanto, relembro: palavras voam; ações fortificam. Diálogo eficiente pressupõe compromisso permanente com as próprias palavras. O brasileiro clama por saúde, paz, verdade e honestidade. Não deseja ver exacerbados os conflitos políticos; quer a democracia e as instituições em pleno funcionamento. Não quer polarizações exageradas; quer vacina, emprego e comida na mesa."

Fux faz um apelo ao diálogo. É claro que o alvo da fala é o presidente Jair Bolsonaro. Alguma incorreção ao fazê-lo? É claro que não. O presidente do STF está essencialmente certo. Só que esse apelo à conversa tem sido como malhar em ferro frio. Bolsonaro precisa alimentar os seus fanáticos porque ele próprio vive do fanatismo.

Pode até ser que a maioria não queira as polarizações exageradas. Mas estas existem. E aquelas ações que ultrapassam o limite legal têm de encontrar a devida sanção.

O ESCORREGÃO
Num discurso essencialmente correto, há um deslize daquele que não conseguiu se libertar ainda da mãe de todos os desatinos destes tempos: a Lava Jato:

"Saibamos ouvir a voz das ruas para assimilarmos o verdadeiro diálogo que o Brasil, nesse momento tão sensível, reclama e deseja. Nós, do Supremo Tribunal Federal, ainda quando nossas atuações tenham que ser severas, jamais abdicaremos os nossos deveres e responsabilidades. No exercício de nosso nobre mister constitucional, trabalharemos para que, onde houver hostilidade, construa-se respeito; onde houver fragmentação, estabeleça-se diálogo; e onde houver antagonismo, estimule-se cooperação."

Com a devida vênia, juízes ouvem a voz das leis, não das ruas. Porque estas dizem, a cada hora e a depender de quem as mobilize, uma coisa. Ou coisas. E diversas entre si. Muitas vezes, contraditórias. Ontem, as ruas queriam o insano voto impresso. Há poucos dias, o impeachment.

Eu, por exemplo, concordo com o impeachment, mas não com o voto impresso. E o que torna legítimas as manifestações em favor do impedimento e ilegítimas as favoráveis ao voto impresso? Respondo. Os que querem a saída de Bolsonaro dizem: "Queremos. Se não der, paciência!" E o que afirmam os terraplanistas do voto impresso: "Se não nos derem, queremos intervenção militar".

Nem toda rua presta, ministro! A voz que pede que a Constituição seja rasgada tem de ser punida, não ouvida,

Foi o apreço excessivo às vozes dos que ignoravam os limites da Carta que nos jogou nesta lama,