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Reinaldo Azevedo

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Ameaça golpista: Vamos rir do ridículo. Mas sem deixar a vigilância jamais!

Fabiano Leitão Duarte, conhecido como "tromPetista", foi preso na manhã desta terça, depois de tentar impedir o desfile de veículos blindados da Marinha, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Foi liberado depois de assinar um Termo Circunstanciado de Ocorrência - Evaristo Sá/AFP
Fabiano Leitão Duarte, conhecido como "tromPetista", foi preso na manhã desta terça, depois de tentar impedir o desfile de veículos blindados da Marinha, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Foi liberado depois de assinar um Termo Circunstanciado de Ocorrência Imagem: Evaristo Sá/AFP

Colunista do UOL

10/08/2021 16h45

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As redes sociais não perdoam o desfile do golpismo barnabé em Brasília. A tônica é o sarcasmo. E os brasileiros fazem muito bem em recorrer à piada. Perder o humor é sofrer duas vezes. Eu mesmo afirmei no Twitter que o maior risco, até agora, diz respeito ao desequilíbrio climático, né? Nunca se emitiu tanto carbono por nada. Tome fumaça preta em Brasília! Que o humor nos livre do sofrimento adicional. Mas sem perder a esperteza jamais.

Ocorre que o que se deu em Brasília nesta terça-feira está longe de ser uma brincadeira. Ainda que a coreografia e a mímica sejam patéticas, estamos falando de joguinhos perigosos, protagonizados por irresponsáveis espalhados em várias áreas do Estado brasileiro.

O NÚMERO UM
O maior de todos os irresponsáveis, por óbvio, é o presidente da República, este ser politicamente repugnante, que combina as muitas faces distintas do atraso. Não representa apenas a ignorância em sentido lato -- é impressionante não se conseguir coligir, sei lá, cinco frases decentes de um político que está na vida púbica há 30 anos. Ele é também a expressão da estupidez em sentido estrito. Foquemos um assunto qualquer, colhido ao acaso, e o submetamos a seu escrutínio. Ao ser judicioso, ele dará um jeito de afirmar o que sabe de antemão ser repugnante, obscurantista, detestável.

Temos um presidente que, visivelmente, sente prazer em afrontar o que desconfia ser o consenso civilizatório sobre qualquer tema. Explica-se: muitas vezes, tal consenso nasce de variáveis complexas, aparentemente contraditórias, que não oferecem uma resposta imediata.

Querem um exemplo? Tomemos o caso da violência urbana. Numa primeira mirada, parece razoável supor que se elimina a violência eliminando-se os violentos. E pronto! O salto imediato é passar a defender grupos de extermínio, como Bolsonaro já fez quando deputado. Daí a descarada simpatia das milícias do Rio — e de toda parte — por esse governo. Explicar que a repressão ao crime é a reação imediata, mas que é preciso atacar as causas estruturais da violência restringe em muito a audiência. E o populismo vai sempre optar, como faz o "Mito", pela resposta simples e errada para problemas difíceis, na equação celebrizada pelo jornalista americano H. L. Mencken.

NÃO ESTÁ SÓ
Mas, como resta evidente, ele não está só nessa marcha do atraso. Braga Netto, o ministro da Defesa, é o homem que saiu da chefia do Estado-Maior do Exército para a Casa Civil, permanecendo um tempo como general da ativa, migrando dali para o posto atual. Na pasta anterior -- e, às vezes, esquecemo-nos disto --, foi o homem que comandou os, digamos assim, esforços do governo federal no combate à Covid-19. É triste e constrangedor constatar, eu sei, mas ele era considerado um membro da nossa elite militar. E se nossa elite militar for essa?

Nada disso, em suma, é brincadeira. Podemos não ter, e acho que não teremos, um golpe à moda do antigo gorilismo latino-americano — uma das raízes do notável atraso político, econômico e social da região —, mas não se duvide de que Bolsonaro tem ao menos uma serventia: evidencia um problema que ainda não enfrentamos. O Brasil é hoje a única democracia do mundo em que os militares reivindicam abertamente a tutela sobre a sociedade civil.

Se, nos EUA, Mark Milley, o general mais poderoso da Terra, disse ao golpista um "Opa! Não ultrapasse a linha", por aqui, um capitão arruaceiro, banido do Exército — que chegou a especular sobre ações terroristas contra a própria Força —, seduz oficiais de alta patente intelectualmente despreparados. Misturam bolor ideológico — polarizações herdadas do século passado, transformadas em taras neste século — com interesses meramente corporativos, que se impõem a um país de miseráveis, dependentes ainda da distribuição de migalhas. E, sim, elas são necessárias porque podem representar a diferença entre uma dieta pobre e a fome.

Não se comportaram de maneira muito melhor setores consideráveis dos nossos endinheirados. Imaginaram que o ogro poderia, no poder, se comportar como um príncipe. Digo e repito: bem-aventurados todos os arrependidos da besteira que fizeram. Só não vale alegar ignorância. Devemos ser cordatos com todos os arrependidos — sem eles, Bolsonaro se elege de novo. Em nome do avanço civilizatório, porém, não podemos aceitar o argumento da ignorância: "Ah, eu não sabia que ele era assim..." Se, nas camadas oprimidas pela pobreza e pela ignorância, isso pode ser até aceitável, não venham as frações da elite que apoiaram um troglodita alegar desconhecimento de causa. E, claro, registre-se à margem: há quem o tenha escolhido para que fizesse rigorosamente o que está fazendo.

A NATUREZA DO PERIGO
É cômico aquilo a que se assistiu em Brasília? A palavra "tragicômico" define com mais precisão. Tem uma graça literalmente mórbida. Seria o caso de perguntar se a exibição de força estava, por exemplo, celebrando os quase 564 mil mortos por Covid-19, segundo os dados consolidados até esta segunda. Nenhuma potência estrangeira nos ameaça. Os nossos males estão aqui mesmo. Ainda que alguns lunáticos dessem um golpe, a aventura teria curta duração. O dinheiro grosso quebraria as pernas dos patetas. O perigo maior é mesmo a renitência do atraso.

O desfile desta terça foi liderado pela Marinha, que desenvolve o navio a propulsão nuclear com recursos que foram destravados pelo então presidente Lula, hoje a Nêmesis para parte considerável dos fardados, o que é absolutamente inexplicável a não ser em razão do mais odiento preconceito. Em muitas décadas, incluindo parte da ditadura militar, não há presidente que tenha sido tão generoso com as Forças Armadas.

O capitão que já evidenciou vocação terrorista quando no Exército e que hoje está na Presidência chegou a ter uma ideia: usar o caça Gripen para dar um rasante na Praça dos Três Poderes, o que quebraria os vidros do STF — e não só — para dar um susto nos ministros. Também os caças começaram a ser comprados na gestão Lula, e a operação foi concluída no governo Dilma, sob supervisão da Aeronáutica, a quem coube dar a palavra final.

A parada desta terça foi, sim, meio mequetrefe. Mas o Brasil está longe de ser um exemplo internacional de força miliar sucateada. Pode não ter condições de enfrentar os grandes na área bélica, mas é uma potência regional, convém não se enganar. O que torna o evento particularmente lastimável é que a exibição não buscava servir de advertência a forças estrangeiras: quis intimidar os nativos.

Em síntese, o PT — em último caso, era o que se estava esconjurando ali — deu às Forças Armadas o que elas têm hoje de mais moderno em termos tecnológicos.

Ocorre que o nosso maior atraso, aquele que realmente se expôs em Brasília nesta terça, é de natureza política, moral e ideológica. Deem uma calculadora que realiza apenas as quatro operações a um gênio, e ele realizará prodígios. Entreguem tecnologia de última geração a um ogro, e ele produzirá atraso.

Como se viu.

Vamos, sim, rir do ridículo. Mas sem deixar a vigilância jamais.