Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
O César da Zona Oeste do Rio quer brincar de cruzar o Rubicão. E aí, Lira?
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"Cruzar o Rubicão" é uma metáfora que define um comportamento político e tem relação íntima com o uso dos militares no jogo do poder. Na República romana, um general não podia cruzar o rio liderando tropas porque isso representava uma ameaça ao poder constituído. César o fez na perseguição a Pompeu no ano de 49 a.C. Teria pronunciado a frase "Alea jact est" — ou "A sorte está lançada". Na literatura, usa-se a imagem para designar uma decisão arriscada, sem espaço para recuo. Depois dela, resta arcar com as consequências. César, como se sabe, encontrou-se com o seu destino. Naquele caso, havia, de fato, uma conspiração. Dele próprio e de outros contra ele. No Brasil, só o presidente conspira contra as instituições.
Jair Bolsonaro e Braga Netto resolveram cruzar, com direito a estacionamento, a Esplanada do Ministério com frações de tropas das Três Forças por ocasião da Operação Formosa, que, a esta altura, vocês já sabem o que é. Trata-se, obviamente, do uso miserável das Forças Armadas, instituições regulares do Estado, para arreganhar os dentes para o Supremo e para o Congresso. O espetáculo bélico se dá no dia em que o Plenário da Câmara pode decidir a sorte do voto impresso.
Em entrevista ao site O Antagonista, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tentou assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Afirmou:
"Eu encaro isso como uma trágica coincidência. Não é que eu apoie essa demonstração. É bem verdade que essa Operação Formosa acontece desde 1988 aqui em Goiás, então não é alguma coisa que foi inventada. Mas também nunca houve um desfile na Esplanada dos Ministérios, na frente Palácio do Planalto. Com relação à votação, nós não deveremos ter problema. Se os deputados quiserem, a gente pode adiar a votação. Eu quero acreditar que este movimento já estava programado. Só não é usual. Não sendo usual, em um país que está polarizado, isso dá cabimento para que se especule algum tipo de pressão."
Coincidência de golpista são soldados uniformizados e armados desfilando à vista dos Três Poderes quando, por óbvio, percorrer o Rubicão da Esplanada não é uma fatalidade, mas uma escolha. E feita por quem tem a intenção de intimidar. Como o percurso não foi decidido pela Marinha, mas por Bolsonaro e Braga Netto, ministro da Defesa, não se tem coincidência, mas provocação barata.
Para lembrar: o presidente da República é quem é, e me dispenso aqui de lembrar as vezes em que ameaçou virar a mesa. E o titular da Defesa é aquele que endereçou uma ameaça golpista ao próprio Lira: ou voto impresso ou suspensão das eleições, o que nos devolveria ao longínquo 1965.
E não, deputado Lira! Sem essa de adiar a votação. Ou bem o deputado considera tratar-se de uma "trágica coincidência", o que dispensa, pois, mudança da agenda, ou, então, não é. Nesse caso, em vez de adiamento, cumpre à Câmara dar uma resposta maiúscula aos que resolveram fazer a mímica do golpe. Que se derrube de vez a proposta terraplanista para o sistema de votação. A propósito: depois que o César da Zona Oeste do Rio (o de Janeiro) decidiu cruzar a linha, anuir com o voto impresso não define um deputado, mas um canalha e um covarde. É simples assim.
FORÇA?
Bolsonaro dá, assim, uma demonstração de força, evidenciando que, se quiser, realmente suspende eleições e fecha os Três Poderes? A reposta é simples: fosse isso possível, ele já o teria feito. Não seriam o apreço à democracia e o amor ao contraditório a contê-lo. A intervenção está afastada não é por falta de vontade, mas de condições objetivas. Como tenho afirmado em toda parte, dar um golpe fácil; mantê-lo é que é o xis do problema.
Olhem à volta e para o mundo. Alguém com um mínimo de sensatez acredita que uma ditadura militar teria vida longa no país? Seria apenas o caminho mais curto para a cadeia, que é o destino que alguns estão cavando já hoje, mesmo sem golpe. Aquilo a que se vai assistir nesta terça é uma bisonha manifestação de fraqueza e de isolamento.
VERGONHA
Não custa lembrar: a Operação Formosa é uma ação de treinamento que busca simular o enfrentamento de forças estrangeiras que decidissem submeter o território brasileiro e seu povo a seus desígnios. Não se trata de treinamento para enfrentar uma guerra civil. Até porque, houvesse alguma possibilidade de esta eclodir no país, não poderia ser enfrentada com as armas a serem exibidas.
Desde o fim da ditadura — a rigor, desde antes —, não víamos o emprego das Forças Armadas para ameaçar a própria população ou como força dissuasória contra os nativos... Bolsonaro não fechou nem o terceiro ano de poder, e eis aí o mais longo período de paz da República — refiro-me, especificamente, à questão militar — interrompido por um capitão reformado arruaceiro, que foi chutado do Exército, cuja carreira na Força é desprezada por 9 entre 10 oficiais de alta patente. Afinal, nenhum deles o quereria como seu subordinado. Não obstante, eles o têm como seu comandante. Mas, acima de todos eles, há a Constituição.
Cinicamente, o presidente recorre às redes sociais para convidar os demais Poderes — e todos os ministros de tribunais superiores — a acompanharem o ato em que receberá os emissários do destacamento. Não é para valer.
Eis aí mais um sinal de que Bolsonaro não está disposto a aceitar pacificamente o resultado das urnas se este não apontar a sua vitória.
Vamos ver até quando Arthur Lira acredita que pode assoviar e chupar cana ao mesmo tempo. Como resta evidente, não pode. O presidente da Câmara tem de decidir se vira sócio da baderna ou se adota um comportamento compatível com a grandeza do cargo que ocupa.
É hora de acender o sinal vermelho.