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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O gás e a Petrobras. Ou: Não bastaria botijão; é preciso ter o que cozinhar

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

30/09/2021 04h55

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Dá para saber quando as coisas estão fugindo ao controle. Costuma-se ter, nesses casos, um excesso de diagnósticos, uma penca de soluções milagrosas e nenhum caminho. O problema mais gritante da hora é o gás de cozinha. O botijão teve um aumento de 31,7% em 12 meses até agosto. É mais do que o triplo da inflação e atinge diretamente os muito pobres.

Jair Bolsonaro pressiona, com suas reações de tio rabugento que mal sabe do que está falando e antevisões miraculosas. Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara, idem. Os deputados decidiram dar uma resposta para a questão. A Petrobras também. O botijão já passa de R$ 100 em alguns pontos do país; parte dos pobres recorre a fogões a lenha improvisados, e o "Mito" vê outubro de 2022 se aproximando.

A PETROBRAS
Comecemos pelo que parece mais exótico. E estou curioso para saber como reagirão os tais mercados nesta quinta. A Petrobras resolveu criar um programa, orçado em R$ 300 milhões, para ajudar famílias muito pobres a comprar gás. Um dos problemas é a escalada internacional do preço do propano, matéria-prima do gás de cozinha. Teve elevação de 15% em um mês e de 96% em 12 meses. Durante uma viagem a Boa Vista, ontem, Bolsonaro disse que o preço vai reduzir à metade. É puro delírio. Isso não vai acontecer nem que os Estados zerassem o ICMS. Voltemos à Petrobras.

Sim, R$ 300 milhões representam muito dinheiro, mas estupidamente longe de dar uma resposta sensível à questão. No fim de julho, o presidente disse que a Petrobras teria uma reserva de R$ 3 bilhões para a distribuição de algo parecido com um vale-gás. Ninguém sabia da existência desse dinheiro reservado — nem a empresa. O valor que se anuncia agora corresponde a um décimo do que o presidente anunciou. Também não está claro como se vai operar o programa.

Qual será a reação do mercado? Em princípio, não é papel de estatal financiar esse tipo de programa. De um lado, pode-se entender que a pressão do governo sobre a empresa foi menor do que se esperava, e o desembolso, pois, ficará muito abaixo do pretendido pelo presidente. Por outro, é claro que resta no ar um cheirinho de intervenção do governo. Sempre que surge essa desconfiança, as ações tendem a cair. Esta quinta dirá.

ICMS
Bolsonaro pressiona os Estados em favor da redução do ICMS. Lira entrou na parada, mas depois recuou. Esse imposto responde por menos de 14% do preço final do produto ao consumidor. Dada a estratosfera em que passou a flutuar, um imposto zerado, o que é impossível, devastaria os cofres dos Estado e teria um impacto pequeno para quem hoje caça gravetos e madeira para improvisar um fogão. A Petrobras fez um comunicado decoroso e socialmente engajado defendendo a sua iniciativa. O impacto final será pequeno.

CÂMARA
A Câmara dos Deputados resolveu agir também. Aprovou um PL em votação simbólica, que segue agora para o Senado, prevendo o subsídio na compra do gás de cozinha de no mínimo 50% do preço médio do botijão no país.

O público-alvo seriam as famílias inscritas no Cadastro Único para acesso ao Bolsa Família, cuja renda per capita seja igual ou inferior a um salário mínimo ou que conte com um familiar inscrito no BPC (Benefício de Prestação Continuada) — aquele que Paulo Guedes queria exterminar quando chegou ao poder cheio de, bem..., parecerá trocadilho: cheio de gás. Hoje, comporta-se mais como um animador de auditório. Se aprovado o texto no Senado, o governo terá 60 dias para criar as regras. E os créditos serão depositados na forma de um cartão.

De onde sairá o dinheiro? No texto, os recursos virão da Cide-combustíveis: a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico que incide sobre a importação e a comercialização de petróleo e derivados.

Por falar em Cide, o Planalto estuda também repassar o total da arrecadação desse tributo para subsidiar, não se sabe como, o preço dos combustíveis. Em 2020, descontados os 29% transferidos obrigatoriamente para os Estados, a arrecadação da União foi de R$ 1,1 bilhão. Bem, é quase nada. E certamente não dará conta do projeto que seguiu para o Senado.

Sinal dos tempos: o texto aprovado na Câmara teve o voto contrário do Novo e de partidos da base aliada do governo. Será que o Planalto realmente tem um plano?

TODOS, MENOS O GOVERNO
Observem: temos o Congresso e a Petrobras tentando interferir no preço do gás de cozinha -- ou melhor: buscando fontes para subsidiar o produto para os mais pobres. É evidente que isso deveria fazer parte da política econômica. Ocorre que há muito tempo essa gente já não enxerga mais nada. Um grande nevoeiro de problemas lhes turba a visão. Resta a Paulo Guedes atacar os pessimistas de sempre e falar coisas sem sentido.

Se o governo busca atender a necessidades que estão postas à mesa, fura o tal teto de gastos. Como a sua credibilidade é baixa, não consegue negociar a questão com os agentes econômicos, que lhe meteriam o carimbo de gastador irresponsável. O resultado não seria nada bom.

Então se vão buscando saídas heterodoxas para responder às urgências, como o calote nos precatórios — para financiar a expansão do Bolsa Família — e esse programa da Petrobras, como se fosse papel da empresa operar tal coisa. É claro que não é. O Congresso, por sua vez, fala num subsídio que é amplo, e a fonte de recurso parece ser muito pequena para a despesa que se cria.

UM FUNDO DE ESTABILIZAÇÃO
Num prazo mais longo, estuda-se criar um fundo de estabilização para minimizar os efeitos da elevação internacional do preço dos combustíveis. Tal fundo seria formado, por exemplo, pelos royalties do petróleo que a Petrobras paga à União. O problema é que a experiência internacional com modelos do gênero é muito pouco auspiciosa. E não tarda para que se tenha um rombo também no dito-cujo. Ademais, um subsídio dado raramente consegue ser tirado sem trauma.

Ninguém sabe o que fazer. Até agora, só se pensaram heterodoxias de baixo impacto. É claro que a pandemia também está na raiz da disparada do preço do gás, em razão da demanda mundial por propano na fase de retomada. Mas está longe de ser o único problema.

É SÓ O GÁS?
O gás ganhou um peso simbólico. Mas é só um item da tempestade inflacionária. A gasolina aumentou 38,67% em 2021; a energia, 20,4%; a alimentação, 17,06%. Nesse caso, esse é o índice médio. No detalhe, a coisa é assombrosa: o óleo de soja subiu 98,5%; a carne bovina, 46,51%; o café, 35,4%; o açúcar, 32,84%; o leite, 31,09%; o arroz, 28,16%; a cesta básica, 25,46%. A inflação oficial, pouco abaixo de já enormes 10%, inclui itens que não passam pela mesa dos pobres nem em sonho. A carestia dos pobres -- é hora de restaurar o vocábulo -- é muito mais grave.

Como se vê, não bastaria ter gás ainda que o governo conseguisse uma redução substancial do preço. Também é preciso ter o que cozinhar.

Paulo Guedes falou anteontem no Quinto Fórum Nacional do Comércio, organizado pelos lojistas. E garantiu: "O Brasil está bombando (...) Eu acho que a economia está voando. Ela está vindo com força".

Então tá.