Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Quem confere a Malafaia e Sóstenes o papel de "sommeliers" de evangélicos?
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Jair Bolsonaro disse lá atrás que indicaria alguém "terrivelmente evangélico" para o Supremo.
A expressão evidencia os tempos estúpidos que vivemos. Não há como, fora do iê-iê-iê ("eu sou terrível/ é bom parar..."), a palavra "terrível" ter sentido positivo. O "terrivelmente evangélico", assim como o "terrivelmente budista" ou "terrivelmente católico", seria apenas um sectário e intolerante, inapto para o Supremo.
Que esse absurdo tenha sido dito e, de algum modo, assimilado, indica o rebaixamento a que estamos expostos. E notem: quer-se esse evangélico sectário para integrar a mais alta corte do país. Os indivíduos que lá chegam podem ter lado, religião, ideologia.. Quando põem a toga, viram ministros. E as paixões têm de ficar do lado de fora da corte.
O pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e uma espécie de verbo armado do bolsonarismo entre os evangélicos, está furioso com as dificuldades encontradas por André Mendonça, ex-titular da Advocacia Geral da União e do Ministério da Justiça.
Num vídeo divulgado nesta segunda, atacou o ministro Ciro Nogueira (Casa Civil), que estaria empenhado em buscar um nome alternativo a Mendonça — mas evangélico, claro! — para desfazer o impasse. Fala-se em Alexandre Cordeiro de Macedo, que é presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). A exemplo do ex-ministro da Justiça, é presbiteriano.
Para Malafaia e sua turma, não serve.
Com o tom exaltado de sempre, o pastor faz um estranho discurso, que nem coerência interna tem. Diz que os ministros políticos — além de Nogueira, cita Flávia Arruda (Secretaria de Governo) e Fábio Faria (Comunicações) — "são obrigados a trabalharem (sic) pela indicação do presidente [Mendonça]."
E continua:
"Isso é uma vergonha, minha gente! Onde é que nós vamos parar? Que história é essa? Não somos nós, pastores, que indicamos. Eu já disse aqui. Se o presidente quer nomear alguém terrivelmente católico, ele vai perguntar a deputados e senadores? Ele vai perguntar à imprensa? Ou vai perguntar aos bispos? Essa é que é a questão, minha gente! Não é pastor que está indicando André Mendonça. É uma vergonha! É um preconceito! E uma tremenda de uma safadeza contra André Mendonça. A indicação de ministro do STF é política. Vou repetir aqui: os ministros Ciro Nogueira, Fabio Farias (sic) e Flávia Arruda, que são políticos e ministros do palácio, são obrigados a defenderem (sic) a indicação do presidente Bolsonaro, são obrigados a trabalharem em favor de André Mendonça. Não querem? Cai (sic) fora daí. Não podem estar aí nesse lugar. E eu vou terminar dizendo: Deus abençoe o Brasil! Deus abençoe você! E nos livre dessa gente má!"
ENTÃO VAMOS VER
Também eu pergunto: "Onde vamos parar?"
Há um erro de premissa no seu discurso inflamado. Presidentes não têm de nomear nem pessoas "terrivelmente evangélicas" nem pessoas "terrivelmente católicas". Isso simplesmente não pode ser um critério. Ora, se pastores não indicam, por que a zanga?
Afirma ele: se Bolsonaro quisesse indicar alguém "terrivelmente católico", iria pedir uma indicação "aos bispos" [da Igreja Católica]. Pois é... Se cometesse o primeiro erro, é provável que cometesse também o segundo. Mas aqui há um particular.
A Igreja Católica é una, Malafaia! Está submetida a uma hierarquia. E eu posso apostar: se o presidente pedisse uma indicação ao papa Francisco, garanto que o Sumo Sacerdote se calaria.
Diga-me cá: quem lhe deu a autoridade para chancelar quem é e quem não é "terrivelmente evangélico"? Você representa uma corrente da Assembleia de Deus, certo? Quem lhe confere a licença para determinar que o presbiteriano André Mendonça é, sim, "terrivelmente evangélico", mas não o também presbiteriano Cordeiro de Macedo? Você detém o monopólio do carimbo, como no caso de certos vinhos, para definir a "Denominação de Origem Controlada" de evangélicos? Virou "sommelier" da crença alheia? Acho que não!
O deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), da mesma corrente, explicita o que seu líder, mesmo aos brados, tenta esconder:
"Quem tem autoridade moral para dizer ao presidente se ele [o candidato ao Supremo] realmente é evangélico ou não somos nós. Estão achando que vão enganar quem? Vocês não são evangélicos".
A petulância, como se nota, vai bem além de se atrever a indicar o ministro do Supremo. O grupo, que representa a corrente de uma corrente, reivindica o poder de chancela: caberia a seus membros (Malafaia, Sóstenes e aliados) dizer quem é e quem não é evangélico. Nem na unificada Igreja Católica, o papa, com a dita "infalibilidade", arroga para si mesmo o papel de definir quem é e quem não é católico.
E, como se nota na fala transcrita, o religioso vai além. Ele também resolve tomar o lugar de Bolsonaro, decidindo quem pode e quem não pode ser ministro do governo.
Bem, então vai um conselho ao presidente: siga a orientação do inflamado pastor e demita Ciro Nogueira, Flávia Arruda e Fabio Faria. Vai que Arthur Lira, presidente da Câmara, tenha um golpe de lucidez e coloque para tramitar um pedido de impeachment, aí o senhor chama o grande pensador, mais o Sóstenes, para segurar a barra.
De tudo o que se diz no vídeo, só uma coisa faz sentido: "Não somos nós, pastores, que indicamos".
Não deveriam ser ao menos.
A propósito: esses valentes teriam de nos explicar por que Mendonça é "terrivelmente evangélico", e Cordeiro de Macedo — que desconheço — não é.
Conheço, sim, o Mendonça do Ministério da Justiça e na AGU. Confundiu crime com liberdade de expressão e liberdade de expressão com crime. Nem acho que estivesse sendo "terrivelmente evangélico". Estava sendo terrivelmente autoritário e obscurantista.
Não serviria para o Supremo ainda que fosse católico, budista, ateu, umbandista ou acreditasse no ET Bilu.