Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Punição a Putin! Otan expansionista. Críticos de novela e BBB veem a guerra
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Apareceu mais um adulto na imprensa brasileira para debater a guerra — é uma guerra, é bom lembrar — entre a Rússia e a Ucrânia. Em termos jornalísticos, é algum alívio. São poucos. Em regra, quem tem dado a versão dos fatos são os alunos da 3ª Série D, repetindo o pouco que conseguem entender sobre a metafísica influente" nos setores majoritários da imprensa americana. Refiro-me à entrevista concedida à Folha pelo diplomata Roberto Abdenur, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). O título — "Bolsonaro cometeu erro gravíssimo de política externa na guerra da Ucrânia, diz diplomata" — reduz em muito o alcance das suas afirmações, embora o erro de Bolsonaro seja estúpido. Mas ninguém precisa de Abdenur para isso. A essa conclusão, convenham, a 3ª D consegue chegar sozinha.
Do modo como anda a cobertura, em regra, com raras exceções, talvez se pudesse recorrer à inteligência artificial — já que a natural e historicamente informada anda em falta — para produzir textos. Bastaria selecionar uma penca de adjetivos desqualificadores destinados a Putin; elencar um conjunto de metáforas que associem a Rússia à Alemanha nazista; fazer um arquivo emprestando ao comediante Volodymyr Zelensky as características de herói da resistência e pronto. Aperta-se o botão "Redija". E tudo estará feito, tomando o cuidado de permitir que vídeos, verdadeiros ou não, que evidenciam a crueldade dos russos ilustrem randomicamente as análises. Tome-se o cuidado adicional de criar uma vigilância permanente para que nenhum agente russo — afinal, sabem como são os hackers de Putin — se insinue no sistema para produzir algum texto simpático aos "novos nazistas".
É evidente que Bolsonaro fez besteira, para surpresa de ninguém. Colocou o país e a si mesmo — aí numa dimensão que também é eleitoral — em situação difícil. A viagem já foi uma estupidez. A declaração de apoio explícito à Rússia é dessas coisas que só a sua suprema ignorância pode produzir. Ou vocês acham que ele estava minimamente informado do risco real da guerra? Vai ver ele foi o único, fora da Ucrânia, a acreditar em Zelensky: "Sentem que o leão é manso; não vai acontecer nada!"
A PRIMAVERA QUE ERA INVERNO
Não tenho memória recente de tamanha avalanche de desinformação como a que está em curso. A coisa mais próxima, de que me lembro, foi a dita "Primavera Árabe". Sei o que padeci quando escrevi -- e fui, sim, o primeiro -- que se tratava, na verdade, do "inverno". Metáfora óbvia demais. Aquilo a que chamavam "Revolução Democrática do Facebook" era apenas a emergência do extremismo islâmico a se aproveitar das redes. Olhem o desastre que a determinação de "espalhar democracia pelo mundo" -- naquele caso, do democrata Barack Obama -- provocou.
Se querem saber os "acertos" que essa visão costuma produzir, com a ajuda da Otan, perguntem à Líbia, celeiro de terroristas que se espalha pelo centro africano. Ou olhem para o Egito: da ditadura à ditadura, passando por muitas mortes. Ou à catástrofe que a determinação de derrubar Bashar al-Assad gerou na Síria e entorno. O Estado Islâmico foi uma cortesia da Otan. Ocorre que a Rússia não é o Iraque. A Rússia não é a Líbia. A Rússia não é a Síria — aliás, lembre-se, a Rússia mandou soldados à Síria. E venceu.
A HISTÓRIA QUE SE CALE
Está proibido, parece, lembrar um tantinho de história para contextualizar o desastre em curso. Fazê-lo pode ser um perigo para a sua reputação. A pessoa corre o risco de ser expulsa por quem a convidou a dar opinião na televisão. Primeiro, é necessário fazer o ato de contrição, como se fosse preciso provar que você nada tem de bom a dizer sobre Vladimir Putin. E duvido que alguém tenha, exceto os tais magnatas da Rússia -- e, ainda assim, aqueles que não tiveram a ousadia de divergir do "autocrata".
É estupidamente óbvio que Putin está invadindo um país soberano e que a ação merece o repúdio de todas as almas civilizadas. Repúdio, note-se, que está em curso. Dos países realmente relevantes — e, nesse contexto, não é o caso do Brasil —, só a China evitou a condenação, mas também não demonstrou entusiasmo. No que concerne às artes da guerra, não à economia (que se discute em outra etapa), isso aumenta o seu poder de arbitragem no mundo. As sanções são, sim, potencialmente danosas à Rússia, e é até possível que Putin tenha iniciado o seu ocaso, justamente quando parece mais poderoso — o que faz sentido lógico também.
Não se chegou a isso por acaso. E agora volto — não me esqueci — à entrevista de Abdenur, que critica, como critico, a truculência de Putin; que se opõe, como me oponho, à invasão da Ucrânia; que defende, como defendo, que o presidente russo seja "condenado e boicotado". Elimine-se, pois, se necessário fosse ou for, qualquer sombra de simpatia pela figura asquerosa (se quiserem, acionem o tal botão de adjetivos desqualificadores...).
QUESTÃO RELEVANTE
Há as questões conjunturais do conflito que tendem a jogar para segundo plano, ou plano nenhum, as estruturais. Sem estas, não se chegará a lugar que preste. Afirma Abdenur:
"Putin deve ser condenado e boicotado da maneira mais veemente possível. Nos dias atuais, é preciso reconhecer que a Rússia tem preocupações válidas com sua segurança diante da expansão da Otan na direção de suas fronteiras. Em política internacional, é sempre mais complicado uma situação em que os dois lados têm razões fundadas. A adesão da Ucrânia à Otan seria o último dominó a cair na fronteira."
Abdenur fala em "dominó". Então se recorra à dimensão histórica do conflito, sobre a qual ele discorre, para se chegar ao que chamo de "questão estrutural". Não seria tudo bastante previsível? Ele afirma:
"Há dois fatos pouco conhecidos que mostram isso. Durante o governo de George Bush pai, o secretário de Estado, James Baker, se preocupou que, com a dissolução da União Soviética, armas nucleares estavam espalhadas por diferentes países, entre eles a Ucrânia de um lado e o Cazaquistão do outro. Os EUA fizeram um movimento muito grande junto a esses países e à própria Rússia, defendendo que todas as armas nucleares da ex-URSS ficassem concentradas nas mãos da nova Rússia, e assim ocorreu. Depois, Bill Clinton lançou a Parceria para Paz. Era uma tentativa para evitar uma nova divisão da Europa e de incluir todos os países, inclusive a Rússia, num grande esquema de segurança coletiva. Isso acabou não prosperando. Houve mudança de governo, e países que tinham sido parte da URSS se sentiram ameaçados pela nova Rússia e, depois, pela Rússia de Putin. Buscaram refúgio na Otan e foram acolhidos de braços abertos. Mas as últimas manifestações da Otan foram preocupantes."
Informação relevante: Baker chegou a escrever um artigo sugerindo que a própria Rússia passasse a fazer parte da Otan. Ainda que pudesse se tratar de uma fantasia da "Paz Perpétua", ele estava, na prática, antecipando o óbvio: sem o "império russo", com suas ogivas, o conflito cedo ou tarde chegaria. E chegou. Ainda que as negociações tivessem sido empreendidas, é certo que as eternas aspirações imperiais da Rússia não se submeteriam à hegemonia americana,
Abdenur fala sobre "as últimas manifestações preocupantes" da Otan. Quais? Ele responde:
"A Otan emitiu um comunicado criticando duramente a Rússia. Mas o secretário-geral declarou que estão deslocando tropas de diferentes países para reforçar sua presença no Leste Europeu e deter eventuais aventuras da Rússia. Biden disse que não aceitarão a invasão de um centímetro de algum país da Otan. Então, a invasão da Ucrânia está levando a um nível de tensão inédito na Europa. Há 30 anos, desde o fim da Guerra Fria, não acontecia algo assim."
O comunicado ao qual se refere diz respeito à garantia de que a Otan reestruturaria parte das forças de defesa da Ucrânia, o que corresponderia a uma espécie de ingresso não declarado do país na aliança militar.
Nunca houve, de modo documentado, a promessa formal de que a Otan jamais avançaria para a antiga Europa comunista. Mas, na ordem internacional, os acordos tácitos podem ter mais importância. Convenham: o grande concerto que juntou na Rússia os artefatos nucleares da antiga União Soviética conferia ao país o status de potência militar antagônica, mas não hostil, como a dizer: "Respeitemos nossas devidas e respectivas zonas de influência".
A que se assistiu nos anos que se seguiram à dissolução do império soviético? Dos 30 países da Otan, 28 estão não Europa, e 14 deles são ex-repúblicas socialistas, três dos quais integravam a antigas União Soviética: Lituânia, Letônia e Estônia — estas duas fazem fronteira com a Rússia, que AINDA enfrentou a bala uma tentativa de adesão da Geórgia. Diz Abdenur: a Ucrânia é "último dominó" da fronteira. E essa peça tem importância brutalmente superior a qualquer outra.
"ISSO JUSTIFICA A INVASÃO?" Nada justifica. E toda as punições a Putin serão bem-aplicadas. E não escrevo isso apenas para que não me tomem como apoiador do presidente russo. Eu não dou a menor bola para essas tolices. ISSO EXPLICA o conflito e contribui para que se tente chegar a uma resposta que não seja a hecatombe universal, sobre a qual nem vale a pena discorrer.
PREOCUPAÇÕES RACIONAIS E LÓGICAS
Países têm seus interesses estratégicos. Manter zonas de influência e de proteção é um dos modos de fazer a guerra sem armas. Mas a turma da 3ª D está muito ocupada em xingar Putin para tentar entender que se está diante de uma de três situações:
a: ou Putin é derrotado na própria Rússia, num golpe de estado; não parece que esteja à vista, Se estivesse, seria o caso de perguntar o que viria depois dele antes de se entusiasmar;
b: ou a Ucrânia cede a parte ao menos das exigências da Rússia e renuncia a seu tricô militar com a Otan;
c: ou o conflito escala o risco nuclear, e aí poderemos morrer todos porque um comediante que imitava um presidente decidiu que poderia, de fato, ser presidente, com o que concordou a maioria do eleitorado.
Macron reconheceu, como liderança possível na Europa, com a aposentadoria de Angela Merkel, que a Rússia tem preocupações legítimas de defesa. Mas convenham: a Otan é uma aliança que busca manter também a Europa sob controle. Não apita nada.
Ainda que se chegue a um cessar-fogo e ainda que Putin arranque concessões da Ucrânia ou venha a derrubar o governo, as sanções de que a Rússia é alvo durarão muito tempo. Ninguém pode dizer com certeza quão seguro é o futuro do presidente russo. E qualquer pessoa com um mínimo de juízo há de torcer para que as ogivas nucleares não caiam nas mãos de algum ser exótico, a exemplo desses que pululam no Leste Europeu.
FINLÂNDIA E INDO PARA A CONCLUSÃO
Lamentemos a invasão, com todas as suas óbvias demonstrações de truculência. Repudiemos a violência praticada por Putin. E não apenas por pudor. Mas é bom que se comece a indagar também de que modo isso a que chamam "Ocidente" pode cooperar para a paz.
"Ah, Reinaldo, quer que as democracias fiquem de joelhos?" MAS ELAS NÃO ESTÃO. MUITO PELO CONTRÁRIO. Guerra à parte, o país permanentemente acuado é a Rússia. Na frente Europeia, estão 28 países da Otan, sendo que 14 são ex-repúblicas socialistas, três delas integravam a URSS. Do outro lado, os dois que faltam para completar o clube: EUA e Canadá. Que governante russo permitiria a "queda" da Ucrânia sem graves sortilégios?
A Otan também tem de colaborar para o fim do conflito. Mas faz o contrário. Em meio a uma crise inédita desde o fim da Segunda Guerra, convidou a Finlândia para fazer parte da aliança. Trata-se da segunda maior fronteira da Rússia, atrás apenas da linha que a separa(va) da Ucrânia. Já pertenceu ao império russo, declarou sua independência no contexto da revolução socialista de 1917 e se aliou aos nazistas no cerco de quase 900 dias a Leningrado. Pagou reparações e aceitou o compromisso histórico de manter a neutralidade caso o vencedor da guerra (para quem não entendeu: a Rússia) seja ameaçado.
Não! Eu nem acho que a Finlândia vá topar sair do seu sossego para colaborar com o caos. Mas o convite feito pela Otan evidencia qual é o inimigo principal da aliança militar e por que, no fim das contas, ela existe. Com o fim do império soviético e da Europa socialista, o Pacto de Varsóvia foi para o ralo. E que se note: tal qual a extinta aliança comunista, a Otan tem o compromisso de mandar tropas para ajudar aos seus. Com isso, lembro que não estamos falando de um clube para jogar dominó. Ou estamos: a teoria do dominó.
O convite à Finlândia, ainda que seja meramente retórico, expõe a natureza do jogo.
Em algumas TVs brasileiras, no entanto — e, em certa medida, em quase todos os veículos —, parece que se está na novela das 21h e que Putin é Odete Roitman. Ou, então, "comentaristas de guerra" se comportam como torcedores do BBB. Não estou cobrando "outro lado" a Putin, o pulha conhecido.
Deem ao menos uma chance aos fatos.