Topo

Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Ao propor mediação, China diz: "Taiwan não é Ucrânia". E a polícia do mundo

Putin e Xi Jinping durante abertura dos Jogos de Inverno deste ano, que ocorreram na China. Chineses não condenaram a invasão, mas também não apoiaram; agora, propõem mediação - Alexei Druzhinin/AFP
Putin e Xi Jinping durante abertura dos Jogos de Inverno deste ano, que ocorreram na China. Chineses não condenaram a invasão, mas também não apoiaram; agora, propõem mediação Imagem: Alexei Druzhinin/AFP

Colunista do UOL

02/03/2022 07h55Atualizada em 02/03/2022 18h13

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A China resolveu se oferecer como mediadora do confronto entre Rússia e Ucrânia. Vamos ver. Até agora, Estados Unidos e União Europeia se mostram excelentes fomentadores da guerra. Xi Jinping parece ter percebido que a coisa se tornou séria demais para ficar a cargo de Joe Biden, que ainda luta para se livrar da memória do vexame do Afeganistão, e de uma Europa acéfala com a aposentadoria de Angela Merkel. De resto, os chineses se tornaram os únicos interlocutores relevantes que podem alegar, vamos dizer, isenção técnica. Reconheceram como legítimas as preocupações da Rússia com sua segurança, negaram-se a caracterizar a ação russa como invasão, mas também não apoiaram a intervenção.

A iniciativa é especialmente positiva porque a China abriu um canal de diálogo com o governo da Ucrânia. Com Putin, afinal, a conversa existe desde sempre. Resta evidente que está a dizer ao aliado de ocasião que nem tudo pode na sua empreitada. Vamos ver como os chamados "países ocidentais" vão se comportar com a tentativa de mediação. Afinal, todos eles sabem que Biden e aliados lideram dois combates: um visível, contra Moscou, e outro invisível: contra Pequim.

Quando rejeitou a palavra "invasão" para a ação de Putin na Ucrânia, Hua Chunying, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, afirmou em entrevista coletiva:
"Esta é talvez uma diferença entre a China e vocês, ocidentais. Não vamos apressar uma conclusão (...). A questão ucraniana tem outros antecedentes históricos muito complicados que continuam até hoje. Pode não ser o que todos querem ver."

Pois é. E a China tem Taiwan. Duas teorias catastrofistas foram postas para circular tão logo os soldados russos ultrapassaram a fronteira da Ucrânia:
1: se o presidente russo conseguisse derrubar o governo de Zelensky, seria apenas o primeiro país de sua lista; na sequência, poderiam vir, por exemplo, os Países Bálticos;

2: se Putin não sofresse a "Mãe de Todas as Punições", a China se sentiria livre para tomar Taiwan.

É um momento notável em que os especialistas em "War" — refiro-me ao jogo — que pululam nas redes sociais passaram a pautar o fígado dos comentadores da imprensa. No Brasil e mundo afora.

A teoria catastrofista desconsidera que uma eventual invasão dos Países Bálticos — Lituânia, Letônia e Estônia —, que já integram a Otan, implicaria confronto militar direto com a aliança. Na origem dos conflitos com a Ucrânia está justamente o esforço de Putin de evitar que sua maior fronteira esteja sob a proteção do inimigo. A expansão da Otan, basta olhar o mapa, não é um pretexto, mas um fato. E é perfeitamente possível fazer esse reconhecimento sem justificar a invasão. Essa é, diga-se, a posição do Itamaraty, que está correta e nada tem a ver com as boçalidades de Bolsonaro.

A segunda teoria — a da ocupação de Taiwan — é variável absolutamente independente das ações de Putin. Avaliar que a China precisa do "antecedente ucraniano" caso decida ocupar a região insular que é parte de seu território é uma grossa bobagem. Ademais, nem a República Popular da China nem o resto do mundo reconhecem a independência da ilha, que, até agora, também não foi declarada. Poucas pessoas duvidam de que, se isso acontecer, será ocupada por Pequim.

É preciso ficar atento às sutilezas desse movimento da China. Ao conversar com o governo da Ucrânia, reconhece que se está diante daquilo que, a seus olhos, Taiwan não é e jamais será: um país independente. Então diz ao mundo, em especial aos EUA e à União Europeia: inexiste similaridade entre as questões russa e chinesa. Convém não misturar os domínios.

Há mais: a Rússia detém o maior arsenal atômico do planeta, mas tem apenas o 12º PIB do mundo, embora seja um grande exportador de energia e trigo. Estima-se que a economia chinesa ultrapasse a americana em 2027. Trata-se do maior motor da economia mundial. O que os chineses teriam efetivamente a ganhar com a retomada de Taiwan — na hipótese, claro!, de que lunáticos não vençam as eleições e declarem a independência? Nada! Se, no entanto, o pior acontecesse e Pequim resolvesse "reunificar o país", esse Ocidente que decidiu transformar a Rússia em pária internacional teria como fazer o mesmo com a China? Seria uma guerra nuclear, mas na economia.

Ao se oferecer para fazer a mediação, é como a se a China estivesse a dizer: "Não tentem nos mandar recados porque, rigorosamente, as nossas relações com aquele pedaço rebelde do nosso país nada têm a ver com o conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Não estamos na lista dos suspeitos, mas na condição de quem pode mediar conflito".

A conversa de que a Rússia usa a expansão da Otan como mero pretexto para ocupar a Ucrânia — que seria apenas a primeira peça de uma lista de ocupações para refazer o antigo império soviético — é fantasia e está na raiz das tensões crescentes entre Moscou e Kiev e é causa primeira do desastre em curso. Os senhores da guerra do Ocidente se congratulam. Há tempos a luta do mocinho contra o bandido não ganhava essa dimensão.

Se a China ocupasse Taiwan, esse tal Ocidente nem poderia alegar tratar-se de um ato ilegal. Mas nada indica que vá acontecer no curto prazo — o curto prazo dos chineses, que costuma ter pelo menos dois séculos...

DISCURSO SOBRE O ESTADO DA UNIÃO
Joe Biden fez ontem à noite o seu "Discurso Sobre o Estado da União". Foi uma cortesia de Vladimir Putin.

"Ao longo de nossa história, aprendemos essa lição: quando ditadores não pagam um preço por sua agressão, causam mais caos. Eles seguem avançando. E os custos e ameaças para a América e o mundo continuam subindo. É por isso que a Otan foi criada, para assegurar paz e estabilidade na Europa depois da Segunda Guerra. Os Estados Unidos são um membro [da Otan] com 29 outras nações. Isso importa. A diplomacia americana importa. Os americanos resolvem os problemas".

(...)
Estamos infligindo sofrimento à Rússia e apoiando o povo da Ucrânia. Putin está agora isolado do mundo mais do que nunca. Juntamente com nossos aliados, estamos agora aplicando poderosas sanções econômicas. Estamos cortando os maiores bancos da Rússia do sistema financeiro internacional. Impedindo que o Banco Central da Rússia defenda o rublo russo, tornando inútil o "fundo de guerra" de US$ 630 bilhões de Putin. Estamos sufocando o acesso da Rússia à tecnologia, o que minará sua resistência econômica e enfraquecerá suas Forças Armadas por muitos anos."

Só uma nota: os U$ 630 bilhões da Rússia são suas reservas, não "fundo de guerra". Parte delas, inclusive, está em títulos americanos.

Na sequência, Biden enviou um recado os chamados "oligarcas russos": disse que o Departamento de Justiça dos EUA está montando uma força-tarefa para punir os seus crimes. Com os aliados europeus, afirmou que vai encontrar e apreender seus iates e seus jatinhos e tomar seus apartamentos.

Os oligarcas russos que se danem, certo?

O Departamento de Justiça dos EUA já funciona como uma espécie de Polícia do mundo, desde que estejam salvaguardados os interesses americanos, é claro!

A depender do governo, essa polícia pode ser mais ativa ou menos.

Os democratas, é certo, sempre se deram muito bem nesse papel.

Afinal, "os americanos resolvem problemas".