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Brasil acerta; "Mito" erra. Ou: Putin e Bolsonaro emburrecem seus críticos
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São tais e tantas as boçalidades cotidianamente ditas por Jair Bolsonaro sobre qualquer assunto — incluindo a invasão da Ucrânia — que todos os juízos acabam se contaminando pela rotina de despropósitos. Assim, dois pronunciamentos corretos e serenos de Ronaldo Costa Filho, embaixador do Brasil na ONU, não mereceram o devido destaque na imprensa brasileira. Até porque, com exceções raras, em as havendo, também ela está operando no "modo Otan". Se o tirano Vladimir Putin não aceita nada que não seja a rendição da Ucrânia a seus aviões e blindados, a divisão dos teclados só se contentará com a Rússia de joelhos.
Se Bolsonaro não tivesse se alinhado a Putin, haveria mais espaço para a contenção e a racionalidade. Mas cumpre perguntar: será agora o presidente a determinar as escolhas de quem o repudia? É preciso cuidado. Bolsonaro e Putin, com efeito, têm o dom de emburrecer muitos dos seus críticos. A culpa não é deles, mas dos burros. Não permita que gente ruim paute seu pensamento.
Na abertura da Assembleia Geral Extraordinária nesta segunda, a fala de Costa Filho reiterou o repúdio do Brasil à invasão — o que significa que o "Mito" pode ter declarado "neutralidade", mas não o país que ele preside. É a primeira vez, note-se, desde que ele chegou ao poder, que se percebe uma nesga que seja de um Estado profissional, que fala em nome dos interesses do seu povo, não do presidente e de suas idiossincrasias. É certo que ele foi advertido que não restava outro caminho. Sendo quem é, houve por bem expressar a sua divergência. Continua solidário a Putin. E duvido que entenda os motivos.
O embaixador lembrou que o Brasil votou a favor de uma proposta de resolução do Conselho de Segurança condenando a invasão. Não foi aprovada -- a Rússia é um dos países com direito a veto. Em sua fala, reiterou a posição brasileira. E fez o certo ao pedir prudência. Afirmou:
"(...) precisamos ser extremamente cautelosos ao avançar (...) Assistimos, atualmente, a uma sucessão de acontecimentos que, se não forem contidos em breve, podem levar a um confronto muito mais amplo. Todos vão sofrer, não apenas aqueles que estão lutando. Aqueles que reiteradamente têm pedido a desescalada [do conflito] também arcarão com os custos do jogo de poder entre a Otan e a Rússia que testemunhamos atualmente".
O texto endossado pelo Brasil condena a ação russa sem reservas. Mas cumpre àquele que representa o país nas Nações Unidas, em havendo compromisso com a solução do conflito, advertir que certas medidas podem ser contraproducentes. E estas, é bom que se note, estão em curso.
No dia anterior, na reunião do Conselho de Segurança, já havia alertado:
"O fornecimento de armas, o recurso a ciberataques e a aplicação de sanções seletivas, que podem afetar setores como fertilizantes e trigo, com forte risco de aumentar a fome, acarretam o risco de agravar e espalhar o conflito e não de resolvê-lo. Não podemos ignorar o fato de que essas medidas aumentam os riscos de um confronto mais amplo e direto entre a Otan e a Rússia".
A observação é impecável. Mas a sandice tomou conta de muitos dos nossos comentadores, supostos amantes incondicionais da democracia. Reitero: Putin, uma figura sem dúvida asquerosa, carrega os mesmos dons de Bolsonaro: ambos não apenas congelam a inteligência de muitos de seus críticos como os levam, em ação reativa, a dizer asneiras em penca ou a condescender com descalabros que supostamente os combateriam.
E não! Ninguém de bom senso está a justificar a ação da Rússia. Ignorar, no entanto, o histórico do conflito concorre para mais violência e mortes porque o eterniza. Observou com correção o representante do Brasil na ONU:
"Ao longo dos últimos anos, assistimos à deterioração progressiva da situação de segurança e do equilíbrio de poder no Leste da Europa. O enfraquecimento dos acordos de Minsk, com o concurso de todas as partes, e o descrédito às preocupações de segurança expressas pela Rússia prepararam o terreno para a crise que todos estamos testemunhando. Deixe-me ser claro, no entanto: essa situação de forma nenhuma justifica o uso da força contra a integridade territorial e a soberania de qualquer Estado-membro. Isso vai de encontro aos mais básicos princípios e normas que todos respeitamos e é uma clara violação à Carta da ONU".
Eis aí: não se trata, e isto está escancaradamente claro, de condescender com a agressão praticada pela Rússia. Mas, no concerto dos países, é preciso reconhecer que conflitos não surgem do nada. Putin não precisa ser "vilanizado", convenham. Ele já é vilão. Ignorar, no entanto, que existe um contencioso óbvio entre a Otan e a Rússia e que os únicos obstáculos que a aliança militar tem pela frente são Putin e seu arsenal corresponde a abandonar a história em favor da ideologia. James Baker e Henry Kissinger, por exemplo, não cometeram esse equívoco.
O primeiro considerou fatal um choque entre a Otan e a Rússia logo depois da dissolução da União Soviética, razão por que afirmou que o país deveria ser convidado a integrar a aliança. O outro defendeu uma Ucrânia livre, sim, mas fora da Otan — e usou a Finlândia como exemplo a ser seguido.
A guerra já produz os seus horrores — e logo se estará chegando a um milhão de refugiados. Há, sim, risco de ataque em larga escala, o que até agora não aconteceu, e só isso explica o número relativamente baixo de vítimas civis quando se considera o tamanho da mobilização militar. Putin tem de ser contido, e há retaliações econômicas devastadoras em curso — que também custarão caro ao resto do mundo.
Ocorre que, quando o Santo Guerreiro está em luta contra o Dragão da Maldade, ninguém está interessado em ouvir minimamente o malvado, e se vão endossar até os desatinos mais grotescos do suposto herói, Zelensky, o presidente da Ucrânia, que fez estas enormidades:
- convocou a população a enfrentar os russos com coquetéis Molotov;
- distribuiu armas a civis;
- anunciou a soltura de presos com experiência em ações militares para combater os russos;
- convidou jovens do mundo inteiro a ir para a Ucrânia lutar;
- assinou protocolo de adesão à União Europeia enquanto seus representantes "negociavam a paz" em Belarus...
Se preciso explicar por que nada disso é razoável, então a explicação seria inútil.
O embaixador brasileiro da ONU fez a coisa certa. Não permito que Bolsonaro me emburreça porque ele não é meu interlocutor privilegiado pelo avesso.
Ponto.