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O que sente militar honrado quando seu chefe pede intervenção estrangeira?
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A informação não poderia ser mais constrangedora e ofensiva à soberania nacional. Jair Bolsonaro, segundo a agência Bloomberg, pediu ajuda a Joe Biden para derrotar o petista Luiz Inácio Lula da Silva. Sem conseguir, até agora, a maioria do eleitorado, o presidente brasileiro decidiu apelar ao Grande Império do Norte. É do balacobaco!
A notícia da Bloomberg foi confirmada pelo jornalista Jamil Chade. As fontes do Itamaraty, por óbvio, falam em off. Talvez seja o momento mais humilhante das relações de um Brasil soberano com um outro país. Há um histórico de, digamos, certa submissão a quem pode mais. Lembremos.
O golpe de 1964 foi desfechado por brasileiros, com a retaguarda comprovada dos EUA. Não foi preciso acioná-la. Uma miríade de interesses, inclusive as paranoias da Guerra Fria, alinhou o governo americano contra João Goulart, que foi deposto. A Lava Jato esteve — e nada há de conspiratório nisto, só de matéria de fato —, em muitos aspectos, sob a coordenação da legislação e dos interesses americanos. Da atuação direta do FBI às sanções impostas à Petrobras nos EUA, a operação serviu aos interesses do Departamento de Justiça (DOJ) daquele país e mandou o nosso próprio sistema legal às favas. Procuradores falaram diretamente com autoridades americanas sem a intermediação do Estado brasileiro — nem mesmo da Procuradoria Geral da República.
Assim, um governo estrangeiro já trocou figurinhas com, para ser genérico, forças subversivas que atuavam aqui dentro. Os golpistas, eram, afinal, subversivos, não? Buscavam depor um presidente e rasgar a Constituição. E o fizeram. Subversiva, em muitos aspectos, foi também a Lava Jato à medida que ignorou seus limites legais e passou a atuar segundo uma compreensão muito particular do que seja Justiça.
Mas, até onde me lembro, estamos vivendo uma situação absolutamente inédita. Nunca antes na história deste país um presidente, no pleno exercício do cargo, pediu a um outro chefe de Estado interferência direta nas eleições vindouras para vencer um candidato de oposição, que, segundo a apuração da Bloomberg, Bolsonaro demonizou como suposto inimigo dos interesses americanos.
As Forças Armadas, obviamente alinhadas com os EUA e ainda curtidas no anticomunismo da Guerra Fria — que não mais orienta os militares americanos —, sempre fizeram questão de parecer um pouco mais autônomas, não é? E esse "autonomismo" se expressou no passado até em maus momentos, como por ocasião do acordo nuclear Brasil-Alemanha (1975), malvisto pelos EUA. A chegada de Jimmy Carter ao poder dois anos depois azedou um tanto mais as relações em razão da sua política de defesa dos direitos humanos. A ditadura por aqui sempre gostou de parecer... autônoma!
Vale dizer: nas vezes em que brasileiros, de modo servil, se entregaram à orientação de outro Estado ou se ofereceram para ser meros esbirros de seus interesses, os protagonistas da subserviência eram, eles próprios, os agentes subversivos. Em 1964, buscavam derrubar um governo eleito pelo povo. E conseguiram. Na Lava Jato, está demonstrado, organizavam-se também à margem da lei com objetivos obviamente políticos.
E aí está o ineditismo de Bolsonaro. Pedir a um outro país que o auxilie a derrotar um adversário interno é coisa que nunca se fez por aqui. Porque isso corresponde a subverter o seu próprio governo; isso corresponde a se colocar, estando na cadeira de presidente, como mero agente de interesses externos; isso corresponde a entregar parte de sua soberania a outra nação; isso corresponde a se apresentar como interventor de terceiros. Afinal, segundo a Bloomberg, Bolsonaro teria argumentado que Lula representaria risco aos interesses dos EUA.
Nota: o Brasil vive o pior momento de suas relações diplomáticas com os EUA em décadas. Afinal, Bolsonaro era um notório defensor da reeleição de Donald Trump e aderiu ao discurso de que este fora derrotado em razão de fraudes. E Lula é que seria o perigo...
Surpresos com a abordagem, segundo a agência, Biden e assessores desviram o rumo da prosa, e o americano teria dito que confia no sistema eleitoral do Brasil, repetindo, então, o que afirmara na parte aberta da conversa. Fato é que Bolsonaro já havia colocado em dúvida o sistema eleitoral e, ainda em solo americano, participou de motociata, concedeu entrevista de caráter golpista, atracou ministros do Supremo, repetiu ameaças... Tudo, repita-se, em solo estrangeiro — comportamento igualmente nunca antes verificado.
A extrema direita brasileira vive a espalhar por aí a mentira de que ONGs e entidades mundo afora de defesa das florestas e de povos indígenas querem internacionalizar a Amazônia. É papo-furado. Os trabalhos de busca de Dom Phillips e Bruno Araújo Pereira evidenciam, com efeito, uma forma particular de internacionalização: a produzida pelo narcotráfico.
Isso quer dizer que os ditos "defensores nacionalistas" da Amazônia, que atacam supostas ambições das ONGs em favor da internacionalização, são bons para produzir discursos ideológicos — afinal, acusam as organizações de esquerdistas —, mas muito ruins de serviço. A região, de fato, está mais desprotegida do que parece. E a culpa não é das ONGs. A desproteção é fruto do casamento, ainda que involuntário, de criminosos com a incompetência dos encarregados pelo Estado brasileiro de defender a floresta.
É sabido que o proselitismo golpista de Bolsonaro contamina militares da ativa e da reserva. Lá está o ministro da Defesa a tratar o TSE como ente subordinado. Fico cá a me perguntar o que sentem os militares honrados quando veem o seu comandante supremo a pedir ao presidente de um país estrangeiro que o auxilie a vencer um adversário num processo eleitoral.
Par encerrar: Bolsonaro vive a dizer por aí que não acredita nem em pesquisa — que tem margem de erro — nem na urna eletrônica, que não têm.
Pelo visto, está mentindo: acredita nas duas e foi pedir socorro a Biden.
É uma humilhação inédita para o Brasil.
PS: Talvez Bolsonaro esteja confundindo o Brasil de 2022 com a República Dominicana de 1965 e conte com uma eventual invasão de fuzileiros americanos caso Lula vença a eleição. Ou ainda antes? Foi uma das maiores vergonhas da história americana. Mas, ora vejam, no segundo ano do golpe dado aqui, Castello Branco enviou quatro mil homens para o país golpeado: entre maio de 1965 e maio de 1966. Quatro morreram. Extinta a intervenção em setembro daquele ano, voltaram ao Brasil e foram dispensados, com uma banana de presente.