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Reinaldo Azevedo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Estado-máfia: Tiranolira rex mira até familiares de diretores da Petrobras

DM7/Shutterstock.com
Imagem: DM7/Shutterstock.com

Colunista do UOL

19/06/2022 21h15Atualizada em 20/06/2022 20h21

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Arthur Lira desatinou. Adágio latino dizia que Júpiter primeiro rouba o juízo daquele a quem quer destruir. Se o presidente da Câmara será destruído, não sei. Uma coisa é certa: se continuar como Tiranolira rex do Brasil, quem afunda é o país.

Escreveu na Folha um artigo contra a Petrobras que tem de entrar para a história como uma espécie de síntese de um pretenso Estado tirânico. Para alguém que circula com tanta desenvoltura no mercado financeiro — e ele circula —, o homem demonstra um formidável ódio ao capitalismo. Fico cá pensando o que diriam "Uzmercáduz farialímicuz" se um graduado aliado de Lula escrevesse algo semelhante.

Ocorre que, em Lira, a turma confia. Talvez suponha, bem lá no fundo, que o presidente da Câmara queira mesmo é quebrar as pernas da Petrobras, empurrando-a para uma crise inédita, o que facilitaria passá-la mais tarde nos cobres. Assim, o ódio ao capitalismo que Lira destila no texto pode ser prova de amor a alguns capitalistas.

É provável que jamais tenhamos lido tamanha soma de disparates em menos de cinco mil toques. E eu os exporei em azul (bold). No extremo do delírio, o presidente da Câmara anuncia que pretende perseguir também os parentes dos diretores da Petrobras. A concepção de Estado de Lira nada tem a ver com uma República. Essa é a visão de uma estrutura mafiosa. E, acreditem, ele chega a empregar a palavra "família" para defini-la — em italiano, "famiglia". Don Corleone aprovaria e talvez só reprimisse o excesso de burrice.

Vamos aos delírios primitivos de Tiranolira Rex.

*
Chegou a hora de tirar a máscara da Petrobras

O fato de a Petrobras ter hoje sua presidência sequestrada por um presidente ilegítimo, que não representa o acionista majoritário e pratica o terrorismo corporativo como vingança pessoal contra o presidente da República, é apenas o cúmulo do absurdo dos paroxismos que tomaram conta da empresa.
Com alguma sutileza -- talvez a única num texto com sangue nos olhos --, Lira recorre à palavra "ilegítimo" para evitar o vocábulo "ilegal". Ele sabe que há uma rotina interna de substituição da presidência da Petrobras. José Mauro Ferreira Coelho, que assumiu o comando da empresa no dia 13 de abril, é o presidente legal da petroleira. A etimologia não vê diferença, note-se, a não ser nuance, entre o "legal" e o "legítimo". O debate político é que costuma distinguir uma palavra de outra.

Nesse caso, Lira chama Coelho de "ilegítimo" porque lá permanece contra a vontade de Bolsonaro, até que a empresa cumpra o calendário da substituição, DE ACORDO COM A LEI. Assim, para Lira, não é a lei que garante a legitimidade de Bolsonaro, mas é Bolsonaro que garante a legitimidade da lei.

Notem que, já no primeiro parágrafo, Lira sugere que a Petrobras vem de uma longa tradição de abusos. E ele vai dizer — afinal, o "Tiranolira rex" do Centrão — quando estes são ou não toleráveis. Talvez tenhamos de concluir que o dinossauro do patrimonialismo (e ele assim se coloca) considere que bom é o abuso que favorece as suas convicções.

A grande questão da Petrobras hoje é que ficou escancarada sua dupla face: quando quer ganhar tratamento privilegiado do Estado brasileiro, a empresa se apresenta como uma costela estatal. Mas, na hora em que lucra bilhões e bilhões em meio à maior crise da história do último século, ela grita o coro da "governança" e se declara uma capitalista selvagem. Chegou a hora de tirar a máscara da Petrobras.
A Petrobras -- de cuja política de preços discordo, note-se, mas é o que diz o atual ordenamento legal -- nunca se declarou, por óbvio, uma "capitalista selvagem". Observem que Lira desqualifica o crivo da "governança".

Nesse parágrafo, trata do que vê como bifrontismo da Petrobras: a sua face estatal buscaria privilégios impróprios, e a privada, o lucro selvagem. Logo, deve-se entender, nada presta na empresa: nem uma face nem outra.

Mas esperem. No dia 5 de abril, afirmou este senhor: "É uma empresa estatal. Se ela não tem nenhum benefício para o Estado nem para o povo brasileiro, que vive reclamando todo dia dos preços dos combustíveis, que seja privatizada e que a gente trate isso com a seriedade necessária".

Está compreendido. Lira não quer uma face da empresa com privilégios estatais e outra como expressão do capitalismo selvagem. Segundo a sua própria categorização, que as duas estejam, então, dedicadas à selvageria.

Não queremos confronto, não queremos intervenção. Queremos apenas respeito da Petrobras ao povo brasileiro. Se a companhia decidir enfrentar o Brasil, ela que se prepare: o Brasil vai enfrentar a Petrobras. E não é uma ameaça. É um encontro com a verdade. Ao longo das décadas, a gigante do petróleo recebeu tratamento privilegiado e benevolência das instituições do Executivo e do Legislativo por ter no crachá o nome de estatal.
Eis Arthur Lira na sua essência -- e não é raro que intervenções suas na Câmara evoluam por esse caminho tortuoso: enquanto ameaça, nega a ameaça. Diz não querer a "intervenção" -- seja lá o que entenda por essa palavra, mas anuncia o apocalipse para os dirigentes da empresa e, creiam, também para seus familiares. Observem que o presidente da Câmara insiste, em vários pontos do texto, que dirigentes da Petrobras teriam privilégios inaceitáveis. Ainda que verdade fosse ou seja, jamais Lira se incomodou com isso. Talvez os ditos-cujos, ainda que verdadeiros, não estivessem em desacordo com seus interesses políticos. Agora estariam. Assim, seria legítimo tudo o que atende às suas ambições, e ilegítimo o que desagrada a Tiranolira rex.

Isso permitiu a seus dirigentes que pudessem ser recebidos de forma diferenciada, que seus pleitos pudessem ser examinados com um olhar de predisposição positiva. Isso fez também que órgãos como o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), de controle e ambientais enxergassem a empresa como uma espécie de "irmã", um membro da "família" do Estado brasileiro.
Ah, agora sim! Eis aí um conceito que guarda pouca intimidade com a República, mas que poderia muito bem definir uma estrutura mafiosa. Pouco importava que a Petrobras estivesse em desacordo -- SEMPRE SEGUNDO LIRA -- com leis ambientais ou com princípios concorrenciais. Afinal, era uma "irmã". Se a irmã, então, se rebela, é chegada a hora de chamar Don Vito Corleone para pôr ordem na bagunça. E máfia, como se sabe, não poupa a família. Ao contrário: esta se torna o primeiro alvo.

Uma pergunta: Lira sabe de outros desmandos de empresas ou órgãos públicos, com os quais ele condescende em nome dessa concepção, digamos, "fraternal" de poder?

Caramba! Lira usa mesmo a palavra "família" para se referir à sua concepção de Estado. Em italiano: "famiglia".

E não faziam isso por nenhuma concessão. Faziam porque assim está inscrito no artigo 173 da Constituição, que qualifica a Petrobras como uma empresa com "função social". Mas ora... Se a Petrobras agora repete o mantra do "compliance" e da "governança corporativa" para justificar seu capitalismo selvagem e voraz, lucrando mais do que as maiores petroleiras do mundo e não tendo qualquer sensibilidade social com o povo brasileiro, não se trata de intervir na Petrobras. Trata-se de abandoná-la à sua própria sorte.
Opa! Agora é tarde. No texto de Lira, eram "concessões", sim. Tratamento que se dispensava a uma "irmã", "olhar de predisposição positiva". Na Constituição que tenho aqui, o Artigo 173 não garante nenhum privilégio a empresas públicas, ao contrário do que ele diz. Fala-se, sim, da "função social" (§1º, I), mas também se define que inexiste distinção entre empresas privadas e públicas ou mistas no que respeita a "direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários" (§1º, II).

Para Lira, palavras como "compliance" e "governança corporativa" são meros "mantras" para "justificar o capitalismo selvagem e voraz" da Petrobras. É mesmo?

Se a empresa privada fosse, seria outra a sua política de preços?

Como é que um dos homens mais poderosos da República, terceiro na linha sucessória — segundo se excluirmos o próprio titular —, tornado o monarca de fato do Brasil em razão das manobras orçamentárias com que chantageou um lunático, sob a ameaça de derrubá-lo, anuncia que vai "abandonar à própria sorte" a maior empresa brasileira?

De resto, a ameaça é outra. Ele demonstra disposição de perseguir até os parentes dos dirigentes da estatal. É claro que nunca vimos um presidente da Câmara se expressar desse modo nem nos tempos da ditadura.

Atenção, investidores! Caso Bolsonaro vença e queira privatizar a Petrobras, é bom saber: caso apareçam os interessados, estes terão de escolher: ou serão tratados à moda Don Corleone ou se tornam "irmãos" comportados do Centrão. Se bem que, tudo dando certo, a empresa poderia ser vendida na bacia das almas.

Sim. Abandoná-la não no sentido de prejudicar. Mas passar a tratar a companhia como outra empresa privada qualquer. Sem nenhum tipo de regalia. Isso não significa punir. Mas ela não poderá mais fazer parte da "família". A Petrobras não pode ser estatal quando lhe convém e privada e selvagem quando diz respeito aos seus lucros astronômicos --sobretudo quando os brasileiros mais vulneráveis mais precisam de apoio. Ou a Petrobras é uma coisa ou outra.
Ah, o trecho é encantador. "Abandonar", segundo Lira, não é "prejudicar", mas tratar "como outra empresa privada qualquer". Assim, deveríamos entender que as empresas privadas, nessa acepção, estão "abandonadas". No capitalismo "fraterno" de compadrio, isso, de resto, é mentira.

Lira se trai de maneira formidável. O trecho é tão burro que, para não desconfiar ainda mais profundamente da sanidade do presidente da Câmara, eu estaria obrigado a concluir que ele, na verdade, está soprando o "apito de cachorro" para os capitalistas selvagens -- e só estes ouviriam. Releiam o trecho acima. Para Lira, a Petrobras tem de escolher:
a: ou é estatal (na verdade, ela é mista), com todas as impropriedades que ele diz haver;
b: ou é privada e selvagem.

Como Lira já defendeu a privatização e como a empresa já foi incluída no PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) com vistas à privatização, talvez seu artigo deva ser lido de outro modo: "É a hora de vocês, capitalistas selvagens".

O primeiro passo que temos de dar é conhecê-la. Quanto gastam seus diretores em suas viagens? Quanto custam suas hospedagens? No exterior ficam onde? Em que carro andam? Quem paga seus almoços e jantares? Alugam carros? Aviões? Helicópteros? Há excessos? De onde vieram? Como constituíram seus patrimônios? Seus parentes: investem onde e são ligados a quem? Depois, temos de entender os critérios de formulação de políticas da empresa. Temos de entender com quem os diretores e os conselheiros conversam. E esses interlocutores: são ligados a que interesses?
Seria o Estado mafioso se vingando. A Petrobras, como empresa de economia mista, conta com diretores que têm salários mais altos do que pagam o Estado brasileiro e mesmo as estatais, mas ainda abaixo dos que se praticam em empresas estrangerias do setor. Ou é assim ou não se contratam os especialistas entre os melhores.

Lira finge que essas pessoas não têm direitos — nem à privacidade. Quer contrastar a rotina de altos executivos da maior empresa brasileira com a dos miseráveis que o governo que ele integra produziu. Quem tem de expor a agenda de almoços, jantares, aviões, helicópteros etc. é Lira, entre outros, que exerce cargo público. E ele próprio? Como constituiu seu patrimônio? E seus parentes?

Isso é uma sandice. O Estado democrático investiga pessoas, quando existem indícios de crimes, segundo a disciplina prevista pelo direito penal. Os estados totalitários é que definem as pessoas a serem investigadas, independentemente de haver ou não indícios de crimes, em busca de alguma coisa. A democracia pune o crime, independentemente da pessoa. A tirania pune a pessoa, independentemente de ter havido crime.

Lira está deixando claro por que uma CPI — e Bolsonaro vociferou a disposição de abrir uma — é ilegal. Expõe, anuncia e arreganha que se trata mesmo de perseguir a diretoria da empresa e seus familiares porque ele e seu chefe se opõem a que se sigam as regras em curso para a definição dos preços dos combustíveis.

Estamos diante de um caso flagrante, ademais, de abuso de autoridade, conforme Artigo 27 da Lei 13.869, que Lira apoiou, a saber:
"Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa"

Esse artigo tem um Parágrafo Único para o caso em que se exclui a ilicitude: "Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada."

CPI não é "investigação preliminar". Como diz o nome, é comissão de inquérito. E não há justificativa.

Sim, comissões de inquérito têm disciplina constitucional. Conforme o Parágrafo 3º do Artigo 58, só podem ser instaladas para investigar fato determinado. Lira quer como alvos até os familiares dos direitores da Petrobras. Só não tem o fato determinado.

A Petrobras é uma criança mimada, sempre tratada historicamente com excessiva complacência. Ela tem o direito de lucrar astronomicamente? Então a sociedade tem o dever de tributar mais os seus lucros, tratá-la com distanciamento. Não podemos mais conviver com a selvagem petroleira capitalista com a mesma informalidade que tratávamos a estatal: o que antes era questão de Estado agora pode ser até "conflito de interesses", "tráfico de influência".
E se ela for privatizada, Lira? Aí vai cumprir o desiderato de ser uma empresa que atende ao interesse social? A propósito: o presidente da Câmara pretende sobretaxar outros setores da economia que também praticam preços em desacordo com a pobreza brasileira ou, nesses casos, ele compactua com subsídios e desonerações? De resto, senhor, apresente uma proposta em vez de fazer ameaças.

Que a Petrobras seja feliz com sua ganância incontrolável. O ex-presidente americano Theodore Roosevelt (1858-1919), no início do século passado, já aviou a receita para enfrentar os monopólios e as corporações sem limites. As instituições brasileiras têm mecanismos para lidar com isso. Agora talvez tenha chegado a hora de deixar a máscara da Petrobras e vê-la no que se transformou: uma empresa em que o lucro vem antes da função social. Uma empresa estatal no papel, mas privada como outra qualquer. Que não merece ser maltratada. Mas que deve encarar as vantagens e as desvantagens de ser uma capitalista puro-sangue.
Se eu levasse a sério o rancor de Lira contra o capital, conclamaria agora: "Capitalistas do Brasil, uni-vos!" E incluiria na exortação até alguns potentados internacionais que cá estão.

Arthur Lira se cansou do regime? É mesmo?

Agora ele pretende punir aqueles que buscam lucros que ele considera abusivos?

Seria assim se assim fosse. E se a jornada a que se dedica o presidente da Câmara for outra? E se estiver demonizando a Petrobras para, quem sabe?, facilitar passá-la nos cobres mais adiante? Quanto mais as ações caírem, melhor para os interessados em ficar com o butim, certo, Tiranolira rex?

Acompanhem: haveria, sim, um jeito de fazer o que querem Bolsonaro e Lira: baixar e tabelar o preço dos combustíveis. E é evidente que isso não passaria pela privatização da Petrobras. Muito pelo contrário. Seria preciso estatizá-la de verdade. Teriam que fechar o capital, comprar as ações dos minoritários e, aí sim, fazer "política pública". Mandando, claro!, o teto de gastos para a cucuia. Já fizeram outras vezes. Mas a coisa não seria simples. Não há tempo até outubro.

Lira deve saber que está propondo uma penca de ilegalidades que seriam fatalmente vetadas pela Justiça. O único efeito de seu texto será mesmo, como o antevisto por Bolsonaro, derrubar mais uma vez o valor de mercado da empresa.

A quem interessa? Isso, sim, há de requerer investigação no seu devido tempo, senhor Arthur Lira.

E não! Eu nem sou entusiasta das regras em vigor para a formação de preços. Mas me agrada menos ainda um governo incompetente e inerme, em que o verdadeiro chefe é Tiranolira rex.

PARA ENCERRAR
E cadê as lideranças do Congresso para contrastar com Lira, conter a sua fúria e impedir o anunciado "Petrobrascídio", que permitiria, no futuro, transformar outro pedaço do patrimônio público em fumaça de escapamento?

É pouco provável que apareçam porque tal pessoa seria confundida com alguém favorável à atual política de preços de combustíveis.

Eis a cloaca do populismo: fazer a coisa certa se confunde com contrariar os interesses do povo, que Lira estaria defendendo.